A dificuldade em categorizar um filme dentro de um único gênero não atesta automaticamente sua excelência visual, sua narrativa bem estruturada ou a solidez de sua direção e elenco. Da mesma forma, essa fluidez classificatória não implica em um desajuste artístico que impeça a obra de estabelecer uma identidade própria e conquistar o público. Dito isso, “The Soul” se consolida como uma das descobertas mais instigantes do ano até agora.
Sob a direção do taiwanês Cheng Wei-hao, a história se desenrola com uma premissa que pode, a princípio, induzir o espectador a uma sensação de familiaridade enganosa. Desde o início, fica claro que o promotor de justiça Liang Wen-chao, interpretado com profundidade por Chang Chen, e sua esposa, a policial Ah-bao, vivida com competência por Janine Chang Chun-ning, estão à frente da investigação do assassinato de um magnata que comanda uma rede de negócios milionários espalhados pela Ásia. Inicialmente, o enredo não se detém excessivamente nessa trama, mas deixa evidente que entre os suspeitos figuram a esposa e o filho da vítima.
A ambientação noir se revela um dos maiores trunfos de “The Soul”, um elemento visual que extrapola a estética e se torna parte integral da narrativa. O uso predominante de tons frios, com azul-marinho e cinza-chumbo, aliado à névoa que permeia diversas cenas, cria um clima denso e nebuloso, reforçando a intenção do diretor de confundir e imergir o público na incerteza. A cena inicial do crime, por si só, já exemplifica o potencial do roteiro para sustentar o mistério, adaptado do romance de ficção científica “Soul Removal Skills”, de Jiang Bo.
A história aborda a evolução das tecnologias cerebrais em detrimento do conceito de alma, expandindo o caso policial para um terreno mais amplo, onde se cruzam temas como magia negra, possessão, metempsicose e avanços em biotecnologia. O roteiro se equilibra entre essas vertentes e a relação afetiva do casal protagonista, cuja força resiste até mesmo à devastação imposta pelo câncer que aflige o personagem de Chang Chen. A cada novo desdobramento, o espectador se vê envolvido por reviravoltas inesperadas que ampliam a complexidade da trama.
Ambientado em um futuro próximo, o ano de 2032, o filme se ancora em um olhar especulativo sobre uma sociedade progressivamente dominada por avanços tecnológicos, mas cada vez mais alheia ao impacto humano dessas transformações. Cheng Wei-hao, já conhecido por sua habilidade em transitar entre diferentes temporalidades, como demonstrou em “Who Killed Cock Robin” (2017), constrói aqui uma narrativa que, sem eufemismos, evidencia a fragilidade humana frente à ascensão da máquina. Dentro desse contexto, há momentos memoráveis, como a dedicação de Liang Wen-chao ao caso do empresário assassinado, usufruindo dos avanços do Estado enquanto enfrenta, sem chances de vitória, uma enfermidade que o consome silenciosamente.
O brilho de “The Soul” se deve, em grande parte, à performance de Chang Chen, que assume o desafio de interpretar um homem à beira da morte, mas que se recusa a sucumbir ao destino. Seu desempenho rendeu reconhecimento imediato e o levou a ser escalado para “Duna”, adaptação do clássico literário de Frank Herbert comandada por Denis Villeneuve. Mesmo em um papel menor, sua presença se impõe, assim como já acontecera aqui, onde sua atuação é o cerne emocional da trama.
A duração do longa, 130 minutos, é um ponto de debate. No entanto, longe de ser um entrave, essa metragem permite o desenvolvimento adequado da narrativa sem a necessidade de recorrer a sustos gratuitos ou atalhos que comprometeriam sua solidez. Quem se entrega à experiência proporcionada por Cheng Wei-hao se depara com uma trama que transcende o mero entretenimento e, ao invés disso, sugere uma jornada de imersão intelectual e sensorial.
Com “The Soul”, Cheng Wei-hao reafirma seu talento ao lado de uma equipe de alto nível, liderada por Chang Chen, conferindo à obra um impacto raro de se encontrar. Quando encontros artísticos dessa magnitude ocorrem, o resultado não apenas marca a memória, mas deixa uma impressão indelével na essência do espectador.
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