Uma mulher aristocrática, de beleza refinada e posição invejável na conservadora sociedade inglesa do pós-Primeira Guerra Mundial, encontra-se aprisionada em um matrimônio que, apesar de socialmente irrepreensível, a condena a uma existência estéril. Seu refúgio não está no homem de classe inferior que cultiva os jardins da propriedade do marido, mas na essência de liberdade e autenticidade que ele representa. “O Amante de Lady Chatterley” não é apenas um relato de paixão, mas uma análise sutil da potência destrutiva do ressentimento, que se alimenta do próprio amor para florescer silenciosamente, envolvendo tudo ao redor em uma coreografia tão delicada quanto fatal.
A diretora Laure de Clermont-Tonnerre resgata a prosa carregada de lirismo de D. H. Lawrence e transpõe para a tela uma das narrativas mais inflamadas da literatura mundial, capturando o espírito de uma época em que as emoções, tanto as que elevam quanto as que arruínam, eram vividas com intensidade devastadora.
O protagonismo de Lady Chatterley sobrepõe-se ao do amante fugaz, um recurso que enfatiza a mensagem que Lawrence quis imprimir à sua história. No Velho Mundo, ainda distante de qualquer paridade de gênero, a aristocrata Constance Reid é um anacronismo vivo. O roteiro de David Magee omite certas nuances do romance original, como o fato de Connie ter vivido outros amores antes de se casar com Clifford Chatterley (Matthew Duckett). Ainda assim, seu comportamento ao longo da trama deixa evidente que foi ela quem tomou a iniciativa, ciente do que queria. Na sexta adaptação cinematográfica do romance, Emma Corrin constrói uma Lady Chatterley audaciosamente sensual, um retrato que desafia os padrões de sua época, mas que permanece fiel à essência da personagem concebida por Lawrence.
Lawrence, com astúcia, não conduz o leitor a julgamentos definitivos sobre Connie ou Clifford, um homem de espírito vacilante que, após retornar da guerra paraplégico, decide se exilar com a esposa na lúgubre propriedade de Wragby. A cineasta francesa explora essa pulsão de morte, uma obsessão que já havia permeado seu “Mustang – Alma Indomável” (2019), e a contrapõe à inquietação de Lady Chatterley, uma mulher tão imobilizada quanto o marido, mas por um exílio imposto por normas sociais. Emma Corrin traduz essa inércia com uma performance de resignação inquieta, lembrando um animal encurralado por um caçador meticuloso, até ser sacudida pelo encontro que redefine sua trajetória. Um único comentário do marido dissipa qualquer resquício de esperança em seu casamento e sela seu destino.
É então que surge Oliver Mellors, o guarda-caça da propriedade, uma aparição tão fortuita quanto inevitável. Como J. Pinto Fernandes em “Quadrilha” de Drummond, ele entra na história sem aviso, mas com uma consciência plena de sua condição de estranho naquele universo. Lady Chatterley, contudo, recusa-se a aceitar o que lhe foi imposto e começa a frequentar o chalé do funcionário, num jogo de provocações cada vez mais ousado. Jack O’Connell disputa a centralidade da narrativa com Corrin, aproveitando cada brecha oferecida pela direção.
Mellors, amante quase involuntário da senhora da casa, escapa de qualquer estereótipo vilanesco, tornando-se, ao contrário, um canal para que o público se aproxime de sua realidade árdua. Ele, assim como Clifford, foi à guerra e voltou marcado por ela, mas sem os privilégios do título nobiliárquico. Seu retorno o condena à pobreza e ao desprezo, inclusive de sua própria esposa, Bertha, que, aproveitando sua ausência, entrega-se a um desfile de amantes.
Não há qualquer analogia possível entre Bertha e Connie: se a primeira dissolve-se em devassidão vazia, a segunda encontra em Mellors algo que transcende o físico. O desejo pelo guarda-caça nasce não apenas do vigor dele, mas do fato de ser um homem que lê avidamente, um leitor de Joyce e Virginia Woolf. Ironicamente, é essa paixão pela literatura que precipita sua ruína: Ned, o novo companheiro de Bertha, invade a cabana e encontra um exemplar de “A Viagem”, de Woolf, com o nome de Connie inscrito na contracapa. A descoberta acelera a tragédia que se desenrola até o fim, oscilando entre a melancolia e uma tênue promessa de redenção.
Separados pelo escândalo, Connie exila-se em Veneza com a irmã Hilda (Faye Marsay), onde é alvo de desprezo por aqueles que ainda defendem os valores que tentou desafiar. Mellors, por sua vez, recomeça em um vilarejo escocês, tentando reconstruir sua vida com os fragmentos que lhe restam. A fotografia de Benoît Delhomme, em um jogo de luz e sombra reminiscente de processos químicos antigos, suaviza a tristeza latente da narrativa. As cenas dos amantes, em paisagens bucólicas, fogem da vulgaridade e evocam um erotismo que se confunde com pureza — corpos nus sob a chuva ou entre folhas, mais próximos da natureza do que das convenções sociais.
No fim, o que resta é um amor marcado pelo caos e pela resistência, um sentimento que sobrevive a despeito das amarras que tentam sufocá-lo. No embate contra o destino, Lady Chatterley e Mellors são guerreiros de um conflito desigual, mas inevitável. Talvez a felicidade, nas suas formas mais cruas, não passe disso: um instante de êxtase antes da tempestade.Uma mulher aristocrática, de beleza refinada e posição invejável na conservadora sociedade inglesa do pós-Primeira Guerra Mundial, encontra-se aprisionada em um matrimônio que, apesar de socialmente irrepreensível, a condena a uma existência estéril. Seu refúgio não está no homem de classe inferior que cultiva os jardins da propriedade do marido, mas na essência de liberdade e autenticidade que ele representa. “O Amante de Lady Chatterley” não é apenas um relato de paixão, mas uma análise sutil da potência destrutiva do ressentimento, que se alimenta do próprio amor para florescer silenciosamente, envolvendo tudo ao redor em uma coreografia tão delicada quanto fatal.
A diretora Laure de Clermont-Tonnerre resgata a prosa carregada de lirismo de D. H. Lawrence e transpõe para a tela uma das narrativas mais inflamadas da literatura mundial, capturando o espírito de uma época em que as emoções, tanto as que elevam quanto as que arruínam, eram vividas com intensidade devastadora.
O protagonismo de Lady Chatterley sobrepõe-se ao do amante fugaz, um recurso que enfatiza a mensagem que Lawrence quis imprimir à sua história. No Velho Mundo, ainda distante de qualquer paridade de gênero, a aristocrata Constance Reid é um anacronismo vivo. O roteiro de David Magee omite certas nuances do romance original, como o fato de Connie ter vivido outros amores antes de se casar com Clifford Chatterley (Matthew Duckett). Ainda assim, seu comportamento ao longo da trama deixa evidente que foi ela quem tomou a iniciativa, ciente do que queria. Na sexta adaptação cinematográfica do romance, Emma Corrin constrói uma Lady Chatterley audaciosamente sensual, um retrato que desafia os padrões de sua época, mas que permanece fiel à essência da personagem concebida por Lawrence.
Lawrence, com astúcia, não conduz o leitor a julgamentos definitivos sobre Connie ou Clifford, um homem de espírito vacilante que, após retornar da guerra paraplégico, decide se exilar com a esposa na lúgubre propriedade de Wragby. A cineasta francesa explora essa pulsão de morte, uma obsessão que já havia permeado seu “Mustang – Alma Indomável” (2019), e a contrapõe à inquietação de Lady Chatterley, uma mulher tão imobilizada quanto o marido, mas por um exílio imposto por normas sociais. Emma Corrin traduz essa inércia com uma performance de resignação inquieta, lembrando um animal encurralado por um caçador meticuloso, até ser sacudida pelo encontro que redefine sua trajetória. Um único comentário do marido dissipa qualquer resquício de esperança em seu casamento e sela seu destino.
É então que surge Oliver Mellors, o guarda-caça da propriedade, uma aparição tão fortuita quanto inevitável. Como J. Pinto Fernandes em “Quadrilha” de Drummond, ele entra na história sem aviso, mas com uma consciência plena de sua condição de estranho naquele universo. Lady Chatterley, contudo, recusa-se a aceitar o que lhe foi imposto e começa a frequentar o chalé do funcionário, num jogo de provocações cada vez mais ousado. Jack O’Connell disputa a centralidade da narrativa com Corrin, aproveitando cada brecha oferecida pela direção.
Mellors, amante quase involuntário da senhora da casa, escapa de qualquer estereótipo vilanesco, tornando-se, ao contrário, um canal para que o público se aproxime de sua realidade árdua. Ele, assim como Clifford, foi à guerra e voltou marcado por ela, mas sem os privilégios do título nobiliárquico. Seu retorno o condena à pobreza e ao desprezo, inclusive de sua própria esposa, Bertha, que, aproveitando sua ausência, entrega-se a um desfile de amantes.
Não há qualquer analogia possível entre Bertha e Connie: se a primeira dissolve-se em devassidão vazia, a segunda encontra em Mellors algo que transcende o físico. O desejo pelo guarda-caça nasce não apenas do vigor dele, mas do fato de ser um homem que lê avidamente, um leitor de Joyce e Virginia Woolf. Ironicamente, é essa paixão pela literatura que precipita sua ruína: Ned, o novo companheiro de Bertha, invade a cabana e encontra um exemplar de “A Viagem”, de Woolf, com o nome de Connie inscrito na contracapa. A descoberta acelera a tragédia que se desenrola até o fim, oscilando entre a melancolia e uma tênue promessa de redenção.
Separados pelo escândalo, Connie exila-se em Veneza com a irmã Hilda (Faye Marsay), onde é alvo de desprezo por aqueles que ainda defendem os valores que tentou desafiar. Mellors, por sua vez, recomeça em um vilarejo escocês, tentando reconstruir sua vida com os fragmentos que lhe restam. A fotografia de Benoît Delhomme, em um jogo de luz e sombra reminiscente de processos químicos antigos, suaviza a tristeza latente da narrativa. As cenas dos amantes, em paisagens bucólicas, fogem da vulgaridade e evocam um erotismo que se confunde com pureza — corpos nus sob a chuva ou entre folhas, mais próximos da natureza do que das convenções sociais.
No fim, o que resta é um amor marcado pelo caos e pela resistência, um sentimento que sobrevive a despeito das amarras que tentam sufocá-lo. No embate contra o destino, Lady Chatterley e Mellors são guerreiros de um conflito desigual, mas inevitável. Talvez a felicidade, nas suas formas mais cruas, não passe disso: um instante de êxtase antes da tempestade.
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