George Miller retornou ao universo de “Mad Max” em 2015 com uma obra que não apenas revitalizou a franquia, mas a elevou ao status de uma fábula distópica de brutalidade e sobrevivência. Trinta anos após “Além da Cúpula do Trovão” (1985), “Estrada da Fúria” joga o espectador em um inferno de poeira e desespero, onde a civilização se desfez em ruínas e a vida se reduziu à luta por migalhas de poder. Nesse território devastado, onde a fé se tornou um conceito obsoleto, Immortan Joe reina absoluto, não apenas pelo controle da água, bem mais valioso que ouro, mas pela imposição de um dogma que o torna divino aos olhos dos miseráveis que o servem.
O tirano interpretado por Hugh Keays-Byrne (1947-2020) sintetiza a barbárie institucionalizada. Cercado por um harém de reprodutoras forçadas e amas-de-leite reduzidas a engrenagens de um sistema de dominação, Joe encarna a distorção de um mundo sem amarras morais. Sua supremacia sobre os destroços da humanidade não se baseia apenas no terror, mas na ilusão de ordem: seus guerreiros fanáticos, os War Boys, aceitam a morte como sacramento, acreditando na promessa de um paraíso mecânico. Miller transforma esse culto à insanidade em uma metáfora universal sobre regimes opressores e a facilidade com que sociedades desiludidas entregam sua liberdade a figuras absolutistas. A história oferece incontáveis paralelos: Hitler, Stalin, Mao Tse-tung, Saddam Hussein, Gaddafi — todos sustentados pela obediência cega de massas manipuladas. Em “Estrada da Fúria”, o ciclo se repete na ficção, mas com ecos perturbadores da realidade.
A narrativa se desenrola como um frenesi visual, sustentado por um rigor estético que transforma o caos em espetáculo. O diretor, que na juventude exerceu a medicina de emergência, canaliza sua experiência com corpos dilacerados em cenas que misturam poesia e brutalidade, compondo um pesadelo do qual o espectador não quer acordar. A violência não é apenas um artifício estilístico; é um espelho do que a humanidade se torna quando reduzida à lei do mais forte. O roteiro, assinado por Miller, Brendan McCarthy e Nico Lathouris, equilibra a ação desenfreada com reflexões desconfortáveis sobre poder, submissão e resistência.
No olho desse furacão narrativo está Max Rockatansky, prisioneiro da loucura ao seu redor. Capturado por Immortan Joe, ele se torna mais um recurso explorável, literalmente drenado de sangue para manter vivos os asseclas do ditador. Tom Hardy assume o papel com um estoicismo primitivo, mas é Charlize Theron quem reivindica o protagonismo. Sua Imperatriz Furiosa é o coração pulsante do filme, uma guerreira biônica que desafia o tirano e conduz as mulheres escravizadas à promessa de um refúgio inalcançável. A jornada de Furiosa é uma sucessão de confrontos que, mais do que uma luta por liberdade, tornam-se um embate de ideias: o domínio patriarcal contra a insubmissão feminina, a servidão imposta contra a autodeterminação.
A grandiosidade de “Estrada da Fúria” não reside apenas em sua ação visceral, mas na forma como reconfigura a estrutura de um épico. A fotografia de John Seale faz da aridez do deserto um personagem à parte, explorando contrastes que dissolvem as fronteiras entre corpo, máquina e paisagem. O carro de Max, um Ford Falcon XB modificado, não é apenas um veículo — é uma extensão do próprio personagem, um símbolo de sua identidade errante e sua conexão com um passado que já não existe. A abordagem estética do filme transforma cada quadro em um painel de violência estilizada, onde até a ausência de cor adquire significado narrativo. Em sequências cruciais, Furiosa e Joe se enfrentam num balé cromático que substitui o espectro vibrante por tons metálicos envelhecidos, refletindo o esgotamento de um mundo à beira do colapso.
Mais do que uma aventura pós-apocalíptica, “Mad Max: Estrada da Fúria” é um tratado sobre desespero e esperança. Furiosa começa como rebelde e termina como redentora, assumindo um papel que reconfigura as dinâmicas tradicionais do gênero. O filme questiona a quem pertence a narrativa do heroísmo, desafiando a hegemonia de protagonistas masculinos e entregando à personagem de Theron um protagonismo incontestável. Sem concessões ou paternalismo, Miller constrói uma heroína que se impõe pela força de sua jornada e pelo sacrifício que a define.
O gosto que “Estrada da Fúria” deixa não é apenas o de óleo queimado e pólvora, mas o de um alerta inquietante. O filme sugere que a história da dominação humana pode se repetir indefinidamente, mas também aponta para a possibilidade de ruptura. O caminho que escolhemos, seja o da submissão cega ou da insurgência, determinará se nos tornaremos espectros de um passado de opressão ou arquitetos de um novo horizonte. E, ao contrário do que Immortan Joe prega, não há salvadores divinos — apenas aqueles dispostos a desafiar a inevitabilidade do deserto.
★★★★★★★★★★