A novíssima e cada vez mais vigorosa indústria cinematográfica da África do Sul parece ter se especializado em histórias com vívido teor moralizante, aplicado de forma quase tão dura quanto a paisagem em que se ambientam. Essas narrativas movem-se da tradição oral para textos de nítida elaboração semiótica, onde cada elemento cumpre uma função bastante específica, nada é gratuito, atores estão ligados de modo umbilical ao que se passa em cena e pode-se enxergar um propósito sutil de educação para além da mera formalidade.
Kagiso Lediga reproduz o modelo com êxito em “Mais uma Página”, uma genuína comédia de erros shakespeariana que junta amizade, amor, casamento, traição, niilismo e esperança em torno de um grupo de pessoas refinadas, com resultados não muito excepcionais, mas nem por isso desimportantes. Lediga, diretor, roteirista e ator principal, desempenha cada uma dessas funções galhardamente, e talvez seja o Spike Lee africano ou uma Mati Diop de barba, habilitado a conquistar Cannes num futuro não muito longínquo.
Max Matsane é um cético profissional. Max, o professor de escrita literária incorporado por Lediga, quer passar-se por um autêntico progressista, um sujeito bastante liberal no que toca aos comportamentos humanos em sua esfera mais individual, mas vai deixando evidentes suas incoerências moralistas nos encontros com os amigos mais chegados, nas poucas interações com os vizinhos e mesmo em suas aulas. Ele frequenta boates, bares e saraus de poesia, mas nunca parece inteiro, uma dor que apenas o badalado irmão músico ou Joel, o melhor amigo e colega de trabalho, percebem.
Ele não admite ouvir a palavra com “n”, e muito menos aquela começada por “k”, kaffir, usada na África do Sul em contextos pejorativos para designar pretos, mas fica cada mais óbvia a paranoia racialista de Max. Lediga e Akin Omotoso compõem uma dupla imbatível, levantando e rebatendo as várias bolas dos diálogos altamente filosóficos, mas muito despretensiosos criados pelo diretor-roteirista, até que o verdadeiro conflito se instala de vez. Ele tem por Heiner, o romancista sul-africano branco interpretado por Andrew Buckland, sentimentos controversos, mas só enquanto Heiner não se confessa um fã de seu livro, “Lost Among the Roses” (“perdido entre as rosas”, em tradução literal). O que não é o bastante para que Max perdoe o que vem depois.
Lediga conta uma trama intrincada mirando os argumentos certos nas horas mais adequadas, ao passo que faz os apontamentos que julga convenientes acerca de discriminação racial, os amores líquidos de Bauman e a fragilidade das instituições. Não fica pedra sobre pedra, e ainda assim resta o consolo do humor cáustico, um ótimo conselheiro para os momentos mais e mais instáveis deste insano século 21.
★★★★★★★★★★