100 prêmios depois, este filme argentino segue impossível de ignorar — agora no Max Divulgação / Warner Bros.

100 prêmios depois, este filme argentino segue impossível de ignorar — agora no Max

Damián Szifron transforma o cinema em um campo de batalha onde o ordinário colide violentamente com o imprevisível. Em “Relatos Selvagens”, o cineasta argentino manipula as tensões da vida cotidiana como se fossem peças de dominó prestes a desabar em um espetáculo de caos. O longa, composto por seis histórias interligadas apenas pelo fio condutor da indignação humana, constrói um mosaico visceral de personagens à beira do colapso, desafiando os limites entre civilidade e selvageria. O espectador é levado por uma jornada onde a frustração reprimida encontra seu ápice em explosões de fúria irreversíveis, resultando em um dos filmes mais provocantes e catárticos do cinema contemporâneo.

Produzido por Pedro Almodóvar, “Relatos Selvagens” opera em um espaço onde a banalidade se transforma em combustível para a anarquia. Cada episódio parte de um cenário reconhecível — um voo, um restaurante, uma estrada, um casamento — e, sem aviso prévio, descamba para um turbilhão de violência, vingança e humor ácido. Em “Pasternak”, passageiros de um avião percebem tarde demais que são peças de um jogo sádico orquestrado por um homem que eles prejudicaram no passado. “As Ratas” expõe a angústia de uma garçonete ao se deparar com o homem responsável pela ruína de sua família, enquanto uma cozinheira pragmática lhe oferece uma solução mortal e inegavelmente tentadora. “Estrada para o Inferno” exalta a selvageria latente no trânsito, transformando uma briga entre motoristas em um duelo insano de brutalidade crescente, onde insultos se tornam armas e o asfalto, um campo de batalha sem vencedores.

A ira latente na obra de Szifron não se restringe a desavenças pessoais; ela se volta contra sistemas que sufocam e desumanizam. “Bombita” retrata a fúria silenciosa de um engenheiro que, habituado a implodir edifícios, encontra na burocracia um adversário ainda mais resistente. O que começa com um carro guinchado evolui para um manifesto explosivo contra o descaso das instituições. Em “A Conta”, o cinismo da elite se revela quando um jovem rico atropela um pedestre e seu pai, sem hesitação, suborna o jardineiro da família para assumir a culpa. A injustiça transborda, desenhando um retrato cruel de um mundo onde dinheiro compra até mesmo a moralidade. Já “Até que a Morte Nos Separe” encerra o filme em um casamento que se transforma em um espetáculo de vingança pública, onde a noiva humilhada encontra um jeito espetacular de reescrever o destino da cerimônia.

A grandeza de “Relatos Selvagens” reside na maneira como equilibra o absurdo e a realidade sem jamais perder a conexão com o espectador. Szifron conduz sua narrativa com precisão cirúrgica, extraindo do elenco performances que oscilam entre a sátira e a tragédia, tornando cada personagem ao mesmo tempo grotesco e completamente crível. O filme não apenas encena revoltas individuais, mas canaliza um sentimento coletivo de insatisfação, permitindo que o público experimente, ainda que indiretamente, o prazer da revanche contra um mundo opressor.

O impacto visual e emocional do longa é amplificado pela cinematografia vibrante de Javier Julia, que intensifica cada cena com luzes e cores carregadas de tensão. A edição de Pablo Barbieri Carrera imprime um ritmo afiado e hipnótico, enquanto o design de produção de María Clara Notari confere a cada ambiente a dose exata de verossimilhança e exagero. A trilha sonora potencializa a sensação de inquietação, tornando cada vinheta uma bomba-relógio prestes a detonar.

Ao final, “Relatos Selvagens” não oferece redenção nem conclusões moralizantes. O filme escancara o prazer da transgressão, explorando a tênue linha entre justiça e vingança, civilidade e barbárie. A cada história, Szifron nos convida a encarar nossos próprios impulsos primitivos, provocando uma catarse inigualável. Poucas obras conseguem capturar com tanta maestria o momento exato em que a sanidade cede lugar ao instinto — e o que se segue é um espetáculo fascinante de fúria libertadora.

Filme: Relatos Selvagens
Diretor: Dámion Szifron
Ano: 2014
Gênero: Comédia/Thriller
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★