Poucas séries conseguem equilibrar absurdos narrativos e tensões psicológicas com a destreza exibida por “A Grande Ilusão”. Adaptada do romance de Harlan Coben por Danny Brocklehurst, a produção da Netflix não apenas mergulha em uma intrincada teia de mistério, mas também transforma sua protagonista em um espelho distorcido da própria paranoia do espectador. Ao longo de oito episódios dirigidos por David Moore e Nimer Rashed, a série explora um casamento corroído pelo tempo, o peso de traumas militares, o jogo de manipulação entre sogra e nora e uma investigação policial que se entrelaça a um drama pessoal devastador. O resultado é um thriller vertiginoso, no qual cada revelação apenas reforça a sensação de que a realidade pode ser tão instável quanto a percepção de Maya Stern, a personagem interpretada com intensidade glacial por Michelle Keegan.
Ex-capitã do Exército e instrutora em uma escola de atiradores, Maya tenta manter a compostura em meio ao luto recente pela perda do marido, Joe Burkett (Richard Armitage), assassinado a sangue frio no parque. Se a morte já seria um evento suficiente para desestabilizá-la, uma descoberta transforma sua dor em desespero: poucos dias após o funeral, Maya vê Joe em uma gravação caseira feita por uma câmera oculta em um porta-retrato. Seria um erro? Uma alucinação? Ou há algo muito mais sinistro por trás da narrativa oficial? A dúvida desencadeia uma descida vertiginosa pela espiral da desconfiança, na qual passado e presente se cruzam, e cada pista parece arrastá-la para um labirinto sem saída.
Não bastasse o enigma que cerca o marido, Maya enfrenta outra tragédia que adiciona camadas de complexidade ao seu tormento: a morte violenta de sua irmã Claire, meses antes, durante um assalto. Seriam os eventos conectados? E, se sim, quem estaria manipulando os fios dessa trama sombria? A série costura essas questões com habilidade, jogando com o espectador por meio de reviravoltas que alternam entre o plausível e o extraordinário, mas sem jamais perder a capacidade de prender a atenção.
Ao longo dessa jornada, “A Grande Ilusão” constrói personagens tão enigmáticos quanto a própria trama. Joanna Lumley entrega uma atuação formidável como Judith, a sogra de Maya, uma psiquiatra calculista e de língua afiada, cujo desprezo pela nora transborda em cada olhar e palavra. Judith não apenas questiona a sanidade de Maya, como também se posiciona como uma força ativa na tentativa de desmoralizá-la — seja tentando convencê-la de que está alucinando ou insinuando que sua instabilidade emocional a torna perigosa. Seu magnetismo cênico faz dela uma antagonista inesquecível, capaz de devorar cenas inteiras sem esforço. Paralelamente, Adeel Akhtar traz humanidade à história como o detetive Sami Kierce, um homem determinado a encontrar a verdade, mas que enfrenta suas próprias limitações devido a um problema de saúde que ameaça minar sua capacidade investigativa. Sua jornada pessoal adiciona uma camada de vulnerabilidade a um enredo já carregado de tensão.
A narrativa de Moore e Rashed se desenrola como um jogo de espelhos, no qual cada revelação reflete uma nova incerteza. Nada é o que parece, e a linha entre alucinação e realidade se dissolve à medida que Maya se aprofunda em suas próprias investigações. Entre encontros violentos — como quando é atacada por uma babá após confrontá-la sobre a filmagem suspeita — e momentos de fúria descontrolada — a cena em que arranca as calças de um técnico agressivo durante um jogo infantil é emblemática — a protagonista se torna um vulcão prestes a entrar em erupção. A dúvida persiste: Maya está sendo manipulada ou ela própria está perdendo o controle?
Em meio a esse turbilhão, a série preserva a essência dos romances de Coben, oferecendo uma sucessão de surpresas e reviravoltas frenéticas. A ambientação britânica substitui o cenário nova-iorquino do livro, mas mantém a atmosfera claustrofóbica e a sensação de paranoia iminente. A ação se desdobra em um ritmo que ora acelera em cenas de tensão absoluta, ora desacelera para momentos de introspecção e dilema moral. O resultado é um thriller que, mesmo se aventurando no absurdo, nunca perde o fôlego — como um dominó de segredos prestes a desabar.
Se “A Grande Ilusão” desafia a lógica? Sem dúvida. Se por vezes exagera em sua própria teatralidade? Também. Mas essa é precisamente a sua força: o exagero aqui não é um defeito, mas uma escolha estética, um convite para que o público embarque em uma montanha-russa narrativa na qual o impossível parece sempre à espreita. Michelle Keegan entrega uma performance impecável, ancorando a história com uma intensidade silenciosa, enquanto a série brinca com expectativas, induz suspeitas e entrega uma conclusão que, ainda que siga a fórmula do gênero, consegue surpreender. No fim, pouco importa se tudo é plausível — o que realmente conta é que “A Grande Ilusão” é impossível de ignorar.
Série: A Grande Ilusão
Criação: Danny Brocklehurst
Ano: 2024
Gêneros: Thriller
Nota: 8/10