Para inteligentes: o olhar crítico e estarrecedor de Jordan Peele em suspense na Netflix Divulgação / Universal Pictures

Para inteligentes: o olhar crítico e estarrecedor de Jordan Peele em suspense na Netflix

Jordan Peele consolidou-se como um dos cineastas mais instigantes da atualidade, reformulando as convenções do terror com um olhar aguçado e uma abordagem singular. Nova-iorquino de 43 anos, ele estreou na direção em 2017 com “Corra!”, um thriller psicológico que não apenas cativou o público, mas também lhe rendeu o Oscar de Melhor Roteiro Original. Em seguida, voltou a provocar discussões com “Nós” (2019), e agora, com “Não! Não Olhe!”, avança ainda mais em sua reflexão sobre a indústria do entretenimento e a própria natureza do espetáculo.

Embora o chamado “black horror” não seja exatamente uma novidade, Peele ressignifica essa vertente ao mesclar terror com críticas sociais afiadas. Nos anos 1970, filmes como “Blacula, O Vampiro Negro” já exploravam o gênero dentro do contexto do blaxploitation, mas o cineasta eleva essa tradição ao integrar camadas narrativas que transcendem a representação simbólica. Em um artigo para o “The New York Times Magazine”, Gabrielle Bellot reflete sobre a força do horror negro nos dias de hoje: “O ressurgimento do black horror força os espectadores a testemunharem a aterrorizante realidade de ser negro em um mundo que ainda associa a escuridão da pele com os significados de escuridão que nossos ancestrais aplicavam à noite: medo, incerteza, perigo”. E Peele tem conseguido capturar não apenas a atenção do público negro, mas também do espectador branco, ampliando o alcance de suas provocações.

“Não! Não Olhe!” acompanha Otis Junior (Daniel Kaluuya), um criador de cavalos que, ao lado de sua irmã Emerald (Keke Palmer), treina animais para produções cinematográficas. A rotina muda drasticamente quando o rancho da família começa a ser visitado por uma entidade misteriosa que se oculta sob uma nuvem fixa no céu. Determinados a documentar o fenômeno, os irmãos instalam câmeras no local e contam com o auxílio de Angel (Brandon Perea), um técnico de equipamentos eletrônicos, e Antlers (Michael Wincott), um diretor de fotografia obcecado por registrar o impossível. A investigação, porém, transforma-se em um pesadelo: a suposta nave não é um simples objeto voador, mas algo vivo, que devora qualquer um que se atreva a encará-la diretamente.

A tensão se instala desde os primeiros minutos, quando um massacre em um estúdio de televisão – protagonizado por um chimpanzé treinado para atuar em uma sitcom – serve como prólogo enigmático. Esse evento ressoa ao longo do filme, sugerindo uma metáfora sobre a relação de Hollywood com seus artistas e a espetacularização da violência. A influência de Steven Spielberg, especialmente “Contatos Imediatos do Terceiro Grau”, é evidente na construção da atmosfera e no fascínio pelo desconhecido, mas Peele subverte a expectativa ao deslocar a ameaça do exterior para o próprio desejo humano de registrar e lucrar com a tragédia.

Ao contrário de seus trabalhos anteriores, nos quais a crítica racial era central, aqui Peele expande sua visão para discutir a cultura do espetáculo. A obsessão de OJ, Emerald e Antlers em capturar a imagem definitiva da criatura reflete a compulsão da indústria cinematográfica por eventos grandiosos, explorando o sensacionalismo como mercadoria. A nave, nesse sentido, não é o verdadeiro foco da trama – sua função é existir para ser filmada. O verdadeiro terror não está na entidade devoradora, mas no impulso incontrolável de transformá-la em entretenimento, mesmo diante da iminência da morte.

Outro subtexto relevante está na analogia entre os animais treinados para atuar e os trabalhadores explorados pelo sistema capitalista. Peele insere simbolicamente a revolta das criaturas domesticadas contra seus domadores, sugerindo uma crítica ao controle e ao abuso sofrido por aqueles que são reduzidos a meros instrumentos de lucro. Essa leitura se fortalece ao observarmos que tanto os cavalos de OJ quanto o macaco da sitcom reagem violentamente após anos de submissão.

Tecnicamente, “Não! Não Olhe!” se destaca pelo uso meticuloso do som e da trilha sonora, elementos fundamentais para potencializar o suspense. Michael Abels, compositor habitual dos filmes de Peele, constrói uma ambiência sonora que amplifica a sensação de perigo e desconforto, enquanto os efeitos de áudio manipulam o silêncio e o ruído de forma a provocar reações instintivas no espectador. A direção de Peele também se sobressai na maneira como permite que seus personagens se desenvolvam organicamente, criando figuras multifacetadas que se afastam dos arquétipos comuns do gênero.

Jordan Peele não apenas reinventa o horror moderno, mas redefine a maneira como o público interage com o gênero. “Não! Não Olhe!” não se limita a provocar medo; ele convida à reflexão sobre o que consumimos como espetáculo e o preço que estamos dispostos a pagar para alimentar essa indústria. O verdadeiro desafio do filme não está em fugir da ameaça, mas em resistir ao impulso de olhar – e, ironicamente, é impossível desviar os olhos dessa experiência cinematográfica.

Filme: Não! Não Olhe!
Diretor: Jordan Peele
Ano: 2022
Gênero: Ficção Científica/Terror
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★
Fer Kalaoun

Fer Kalaoun é editora na Revista Bula e repórter especializada em jornalismo cultural, audiovisual e político desde 2014. Estudante de História no Instituto Federal de Goiás (IFG), traz uma perspectiva crítica e contextualizada aos seus textos. Já passou por grandes veículos de comunicação de Goiás, incluindo Rádio CBN, Jornal O Popular, Jornal Opção e Rádio Sagres, onde apresentou o quadro Cinemateca Sagres.