Num cenário onde as redes sociais se transformaram em palanques para hostilidade gratuita, num tempo em que o desprezo parece uma virtude e a indiferença se tornou moeda corrente, a bondade ainda encontra espaço? Desde a infância, aprendemos que o mundo é um território implacável, onde cada palavra precisa ser cuidadosamente escolhida e cada gesto, meticulosamente calculado, sob risco de enfrentar consequências avassaladoras. Esse aprendizado precoce molda não apenas a forma como nos relacionamos, mas também define os caminhos que escolhemos trilhar.
Diferente da maioria das crianças, Anuja tem plena consciência de que não é o centro do universo. Seu olhar para a realidade se aproxima do de Alice, de Lewis Carroll (1832-1898), mas sem a doçura ingênua da personagem inglesa. Há nela algo mais sólido, mais determinado. No curta de Adam J. Graves, a pequena menina caminha por Délhi, segunda maior cidade da Índia, oferecendo as sacolas feitas por sua irmã, Palak. Em apenas 22 minutos, o filme consegue condensar poesia e brutalidade, escapando da estética vibrante e coreografada de Bollywood para mergulhar na invisibilidade de uma infância marcada pela miséria e pela falta de perspectivas.
O cineasta, que também assina o roteiro, revela que a venda das sacolas representa a única renda das irmãs, cujo grande objetivo é conseguir dinheiro suficiente para que Anuja participe de um exame que pode garantir bolsas de estudo a crianças de baixa renda. Palak recolhe pedaços de tecido, costurando-os quando tem material suficiente, utilizando as máquinas da oficina do inescrupuloso Verma, interpretado por Nagesh Bhonsle, a perfeita personificação do empresário explorador.
Foi através do professor Mishra, vivido por Gulshan Walia, que elas tomaram conhecimento da prova. Com o desenrolar da trama, o filme adquire contornos quase documentais, potencializados pela trajetória da protagonista. Sajda Pathan, que dá vida a Anuja, foi resgatada das ruas pela ONG Salaam Baalak Trust, mas sua atuação vai muito além da experiência de vida.
Ao fugir do segurança de um shopping após vender duas sacolas por quarenta rúpias cada, a cena poderia carregar um peso dramático, mas Pathan e Graves optam por um tom mais leve. Em meio a cinema, pipoca e jalebis, há espaço para pequenos prazeres, e a cumplicidade entre Anuja e Palak se manifesta com naturalidade. O desfecho aberto nos convida a desejar um futuro melhor para elas, e também para o próprio filme, que traz ecos de “A Viagem de Chihiro” (2001), de Hayao Miyazaki, e “Se Algo Acontecer… Te Amo” (2020), de Michael Govier e Will McCormack. Contudo, a obra de Graves dialoga de maneira mais direta com “Closing Dynasty” (2023), de Lloyd Lee Choi, mantendo, ainda assim, uma identidade própria e inconfundível.
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