O filme escandinavo do Prime Video é um colírio para os olhos e um alívio para a alma Divulgação / Synapse Distribution

O filme escandinavo do Prime Video é um colírio para os olhos e um alívio para a alma

Nenhuma evidência comprova a evolução do homo sapiens de forma mais assertiva do que uma ida ao mais prosaico restaurante de autoatendimento, os populares self-services. Se há duzentos mil anos a variação do hominídeo mais próxima do homem moderno como o conhecemos, não suportando mais basear sua dieta em frutos, larvas e, nos períodos de grandes chuvas, peixes e moluscos dos mares e rios, passou a arriscar-se com lanças, tacapes e machados atrás de cervos, javalis e mamutes, “decisão” fundamental para que, pelos dois mil séculos que se seguiram, atingisse o desenvolvimento cognitivo que o capacitou a inventar ferramentas, máquinas e veículos e se dedicasse ao aperfeiçoamento de serviços que poupam-lhe tempo e energia. 

Alimentar-se já foi bem mais difícil, e é cada vez mais evidente a interferência da comida nas relações sociais, públicas ou as que se dão entre quatro paredes. A justa combinação de doce, azedo, salgado, quente, frio, gordura e crocância sugerida por Christoffer Boe em “Sabor do Desejo” para a excelência de uma refeição espelha-se na vida mesma, como fica claro à medida que a história avança. Boe e o corroteirista Tobias Lindholm tratam de muitos assuntos a partir de um casal lutando por uma estrela Michelin para seu restaurante, nem todos, por óbvio, relacionados a comida — o que acaba por ser um problema.

O diretor guarnece seu trabalho com os flashbacks que administra bem, dispondo as várias fases atravessadas por Carsten e Maggie, os protagonistas interpretados por Nikolaj Coster-Waldau e Katrine Greis-Rosenthal, em capítulos que aludem a paladares e momentos de elaboração de um prato. Parece que o longa desdobrar-se-á em torno da alta gastronomia do chef Carsten, com Coster-Waldau bastante hábil em criar erguer cortinas de fumaça para ocultar o que de fato Boe quer apresentar, mas não mais que Greis-Rosenthal, a peça-chave para que a audiência teça conclusões úteis. Se Carsten é o mago que funde diferentes sensações gustativas de modo a criar algo único, Maggie é a pessoa mais adequada para verter a arte do marido em reconhecimento profissional e fortuna, e aquele tal prêmio centenário talvez apareça no embalo. 

O filme começa a revestir-se de uma atmosfera noir quando, ao fim de uma noite de serviço, Maggie encontra uma mensagem na qual alguém a acusa de trair Carsten. Essa impressão ganha força com a cena em que ela e os filhos, August e Chloe, de August Vinkel e Flora Augusta, saem num passeio por uma floresta nos arredores de Copenhague à cata de cogumelos. August, o mais novo, perde-se da mãe e da irmã e ao prestar-se atenção em detalhes mínimos que Boe nem faz tanta questão de esconder pode-se atingir a solução do mistério fundamental em “Sabor do Desejo”, cujo título, mesmo o original, levam a audiência a esperar algo bem distinto do que é colocado à mesa. De qualquer forma, o que se tem é apetitoso.

Filme: Sabor do Desejo
Diretor: Christoffer Boe
Ano: 2021
Gênero: Romance/Thriller
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.