Última semana na Netflix: se há um filme obrigatório na vida, é a obra-prima de Rob Reiner Divulgação / Columbia Pictures

Última semana na Netflix: se há um filme obrigatório na vida, é a obra-prima de Rob Reiner

A infância é um território de ambiguidades: ao mesmo tempo em que se revela um refúgio de inocência e liberdade, carrega as sementes inevitáveis da perda e do amadurecimento. “Conta Comigo”, dirigido por Rob Reiner e inspirado na novela “O Corpo”, de Stephen King, não se limita a uma aventura juvenil. O filme estrutura-se como uma jornada iniciática, na qual a busca por um corpo desaparecido se converte em uma travessia emocional, revelando a dolorosa transição entre a infância e a consciência adulta.

Gordie, Chris, Teddy e Vern são mais do que meros arquétipos adolescentes. Atravessam o mundo como desajustados, cada um carregando marcas invisíveis que moldam suas trajetórias. A caminhada pelos trilhos do trem não se restringe à geografia da pequena cidade em que vivem; simboliza um deslocamento interno, uma passagem irreversível rumo a verdades que ainda relutam em aceitar. A ideia romântica da aventura logo cede lugar a um enfrentamento visceral da realidade, e cada passo revela não apenas os desafios do mundo adulto, mas a constatação silenciosa de que crescer significa, em alguma medida, abandonar aquilo que antes parecia imutável.

O roteiro de Bruce A. Evans e Raynold Gideon realiza uma conversão magistral do suspense característico de King para uma narrativa introspectiva, em que a ação e o humor se entrelaçam organicamente ao amadurecimento dos personagens. A estrutura em flashback, ancorada pela lembrança da morte de Chris Chambers, estabelece o tom melancólico e contemplativo que permeia toda a obra. Gordie Lachance, narrador e protagonista, revisita sua juventude com a clareza de quem já cruzou o limiar da infância, mas com a saudade de quem sabe que certos momentos jamais se repetirão. Sua relação com Chris — marcada por lealdade, cumplicidade e desejos contidos — é o coração emocional do filme, e a lembrança desse laço perdido ressoa como um eco persistente do que poderia ter sido.

A jornada até o corpo de Ray Brower sintetiza essa colisão entre imaginação e realidade. Se, no início, a expedição parece uma façanha gloriosa, logo se revela um confronto direto com a finitude. O cadáver que encontram ao final do percurso não é apenas o desfecho da busca; é a materialização da morte como um conceito tangível, um lembrete cruel de que a infância não é um escudo contra a fragilidade da vida. Os trilhos do trem, que atravessam a narrativa como um símbolo recorrente, são ao mesmo tempo caminho e metáfora — representam a inevitabilidade do tempo, o avanço inevitável que arrasta cada um dos garotos para longe da segurança da juventude. A icônica travessia da ponte encapsula essa tensão: não há como evitar o trem da maturidade, e hesitar significa apenas tornar a transição mais perigosa.

Os diálogos, despojados e espontâneos, trazem um realismo raro ao filme. O linguajar desbocado e as provocações entre os garotos não são apenas registros autênticos da adolescência, mas camadas que ocultam, sob a aparência da descontração, os medos e as inseguranças de cada um. Chris Chambers, interpretado com impressionante profundidade por River Phoenix, se destaca como o personagem mais complexo da trama. Filho de uma família marcada pelo estigma social, ele vive em uma batalha silenciosa contra o destino que o mundo já escreveu para ele. Sua relação com Gordie vai além da amizade: é um pacto de resistência contra os rótulos que a sociedade lhes impõe. Enquanto Chris luta para provar que não está condenado a repetir os erros do pai, Gordie busca provar para si mesmo que sua voz tem valor.

A nostalgia meticulosamente construída permeia cada detalhe da obra, e a trilha sonora desempenha um papel crucial nesse processo. Canções como “Lollipop” e “The Book of Love” não apenas situam a história no tempo, mas reforçam a universalidade das experiências ali retratadas. A memória, aqui, não é um mero repositório de fatos, mas um território onde emoções e sensações permanecem intactas, imunes ao desgaste dos anos.

Diferentemente de tantas narrativas coming-of-age que recorrem ao sentimentalismo fácil, “Conta Comigo” trata a transição para a vida adulta com uma delicadeza rara. O crescimento não se dá por epifanias grandiosas, mas em detalhes sutis — nos silêncios carregados, nos olhares que dizem mais do que palavras, nas despedidas que, no momento, parecem triviais, mas que o tempo revela como definitivas. A separação dos amigos, apresentada sem estardalhaço, é um dos momentos mais comoventes do filme. A consciência de que certas conexões se perdem com o tempo surge não como um choque, mas como uma aceitação inevitável. O desfecho, em que o adulto Gordie reflete sobre sua amizade com Chris e digita as palavras “Amigos vêm e vão como garçons em um restaurante”, sintetiza, com dolorosa simplicidade, a transitoriedade das relações humanas.

O destino dos personagens reforça essa premissa com uma força irrefutável. Chris, que dedicou a vida a escapar da sombra de sua família, encontra um fim trágico ao tentar mais uma vez fazer o que é certo. Gordie, ao se tornar escritor, preserva essa história em sua memória, reconhecendo que certas ausências nunca deixam de nos acompanhar.

Mais do que um relato sobre amizade e crescimento, “Conta Comigo” é um filme que amadurece com seu espectador. A cada nova revisão, novas camadas emergem, pois a maneira como o percebemos se altera conforme percorremos nossa própria jornada. Eventualmente, todos nos tornamos Gordie Lachance, olhando para trás, tentando capturar na lembrança as vozes que um dia preencheram nossos verões. Mas, assim como os trilhos que desaparecem no horizonte, o passado se dissolve, restando apenas o eco de quem um dia fomos.

Filme: Conta Comigo
Diretor: Rob Reiner
Ano: 1986
Gênero: Aventura/Comédia/Drama
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★