Em Hollywood, quando a lenda enuncia-se de modo mais perturbador, chamativo ou apenas picaresco que o fato, é ela quem vence e ganha a página dos jornais (e, claro, das suspeitas revistas de fofocas). Reza a lenda que Eddie Murphy sonhava conhecer uma mulher que ignorasse sua carreira e os milhões de dólares que pudera amealhar com ela, amando-o somente pelo que o humorista mostrasse-lhe de seu temperamento, de sua índole, de seu espírito e de seu vigor sexual.
Murphy tinha certeza, não sem boa dose de razão, que essa mulher, caso existisse mesmo, só poderia ser encontrada numa comunidade tribal africana, e aproveitou a alegoria do que entende por amor perfeito em “Eddie Murphy — Sem Censura” (1987), o show-documentário dirigido pelo amigo Robert Townsend. No ano seguinte, o então superastro do besteirol na América punha em cena todas as suas fantasias — misóginas e egocêntricas para uns; divertidas e insanas para outros — em “Um Príncipe em Nova York”, uma comédia rasgada que Murphy torce a seu gosto, transformando-a ora na saga sobre um pobre homem rico à procura de um lugar genuinamente seu no mundo, ora fazendo dela uma estranha confissão, postura que, hoje, cerca de quarenta anos depois, é cheia de muitíssimas contraindicações.
Murphy é Akeem, o príncipe herdeiro de Zamunda, um reino fictício no continente negro, que precisa dirimir algumas dúvidas. Ele acaba de completar 21 anos, mas continua usufruindo de todas as regalias de que um mortal pode desfrutar, inclusive ter as partes pudendas limpas por belas escravas igualmente pretas — o que gerou um bafafá de comentários hipócritas e ainda mais racistas do que o suposto preconceito do filme. Murphy e os corroteiristas David Sheffield e Barry W. Blaustein parecem sempre dispostos a subverter as orientações dos executivos da Paramount, no que são apoiados pelo diretor John Landis, inclusive nas queixas públicas à escalação de Louie Anderson (1953-2022) como Maurice. Bem menos polêmica é a química entre Murphy e Arsenio Hall na pele de Semmi, o ordenança designado pelo rei Jaffe Joffer de James Earl Jones (1931-2024) para tomar conta de futuro soberano. Os dois vão parar no Queens, vizinhança barra pesada de Nova York, porque deixam-se levar pelo nome do bairro. Tudo à ingenuidade dos anos 1980.
Por essas e outras tantas não é tão fácil cravar se “Um Príncipe em Nova York” envelheceu bem ou, ao contrário, sucumbiu deveras aos ditames do politicamente correto — aliás, é difícil até chegar à conclusão sobre se o filme ainda é engraçado. Ninguém volta quarenta anos no tempo sem sentir o peso de suas próprias escolhas, sem começar a refletir se está de fato no seu melhor momento, como recomendam-nos que digamos os manuais de etiqueta e os tais coaches das redes sociais, e, assim, a viagem pode não ser assim tão prazerosa. De minha parte, considero deliciosa essa nostalgia que Eddie Murphy encarna como poucos, quiçá um elixir da juventude a que se deve recorrer em quadras cinzentas da vida. Cinema também é isso.
★★★★★★★★★★