A aparente tranquilidade das cenas iniciais de “Aftersun” esconde camadas de dor e introspecção. Em um quarto de hotel modesto, um pai e sua filha compartilham momentos de cumplicidade, enquanto a menina, em seus nove anos, tenta se afirmar diante da maturidade incerta, e o homem, na casa dos trinta, carrega silenciosamente o peso de uma melancolia que parece impregnar todos os aspectos de sua vida. A separação recente, uma ferida ainda aberta, se manifesta não apenas em seu semblante desgastado, mas em pequenos gestos que revelam sua tentativa falha de manter a ilusão de estabilidade.
Charlotte Wells mergulha em suas próprias lembranças para dar vida a Calum e Sophie, os protagonistas de uma história que se impõe pela honestidade emocional. A diretora-roteirista constrói um retrato ao mesmo tempo delicado e avassalador sobre a relação entre pai e filha, refletindo suas próprias experiências pessoais. Aos dezesseis anos, Wells perdeu o pai, um distanciamento físico que se tornou definitivo, deixando marcas que ecoam na narrativa do filme. Esse olhar pessoal confere à obra uma sensibilidade rara, capaz de ressoar profundamente com quem já experimentou a fragilidade dos vínculos familiares.
Na Turquia, durante uma estadia em um resort modesto, Calum e Sophie vivem momentos que oscilam entre a leveza e o silêncio inquietante. A direção de Wells insere detalhes sutis que revelam o tormento interior de Calum — o cigarro que demora a acender por conta do gesso no braço, a incerteza refletida no olhar perdido. O erro na reserva do hotel, que os coloca em um quarto com apenas uma cama, serve como um pequeno incômodo, mas também um símbolo da desconexão entre os dois, ampliando a sensação de um espaço emocional que não pode ser preenchido.
Paul Mescal e Frankie Corio entregam atuações que oscilam entre a vulnerabilidade e a contenção, fazendo com que o público divida sua empatia entre os dois. Sophie, por mais que tente disfarçar, sente o peso da separação dos pais e o desconforto de uma rotina com a mãe que não parece plenamente satisfatória. Calum, por sua vez, mesmo tentando ser receptivo às queixas da filha, enfrenta seu próprio labirinto interno, nutrindo sonhos improváveis como abrir um café com um amigo, uma ideia que soa mais como um escape do que um plano realista.
A perspectiva de Sophie é a que prevalece ao longo da narrativa, mas quando Celia Rowlson-Hall assume a personagem na vida adulta, a intenção de Wells de apresentar sua própria leitura dos acontecimentos fica ainda mais evidente. A cinematografia de Gregory Oke acentua essa aura de lembrança e transitoriedade, culminando na cena impactante em que Sophie adulta revisita o passado, observando Calum em meio a uma pista de dança lotada. Sob luzes estroboscópicas, ele se contorce ao som da música, absorto em um estado que oscila entre abandono e alívio, um instante que parece sintetizar toda a sua dor não verbalizada.
A potência de “Aftersun” reside na forma como evoca memórias e sentimentos universais, fazendo com que cada espectador projete sua própria experiência nas entrelinhas da história. Entre a saudade e a dor da ausência, o filme nos obriga a encarar a fragilidade dos laços que nos definem. Talvez seja isso o que nos espera depois do sol: a consciência de que certas lembranças, por mais dolorosas que sejam, são também as que nos tornam quem somos.
★★★★★★★★★★