O filme que levou multidões aos cinemas e consagrou Clint Eastwood acaba de chegar à Netflix Divulgação / Paramount Pictures

O filme que levou multidões aos cinemas e consagrou Clint Eastwood acaba de chegar à Netflix

A imparcialidade da justiça, frequentemente proclamada pelas vozes das ruas, deveria pautar-se unicamente na conduta dos indivíduos, sem se deixar influenciar por sua cor de pele, posição social ou conexões de conveniência. No entanto, o sistema jurídico insiste em operar sob filtros seletivos, produzindo distorções gritantes. No Brasil, a população carcerária ultrapassa os 700 mil detentos, enquanto a capacidade oficial não passa de 440 mil, resultando em uma sobrecarga superior a 60%.

O dado mais alarmante, contudo, é que aproximadamente 62% desse contingente é composto por pessoas negras ou pardas, o que equivale a cerca de 450 mil prisioneiros. Isso reforça uma percepção histórica: as prisões parecem ter sido desenhadas para uma parcela específica da sociedade, enquanto os brancos, numericamente inferiores nas celas, quase ocupam um lugar acidental nessas estatísticas.

Nos Estados Unidos, a discrepância atinge proporções ainda mais evidentes. Com uma população carcerária superior a dois milhões de pessoas, cerca de 66% são negros. A pergunta inevitável é: quantos desses indivíduos tiveram acesso a uma defesa justa? A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, fundamentada nos princípios iluministas da Revolução Francesa, estabelece a ampla defesa como direito fundamental.

O movimento que desmantelou os privilégios da aristocracia e precipitou o fim da monarquia absolutista de Luís XVI trouxe consigo um ideal de equidade que, paradoxalmente, parece não ter se concretizado em larga escala. O documentário “A 13ª Emenda” (2016), dirigido por Ava DuVernay, revela como o sistema jurídico americano, em sua estrutura, perpetua a exclusão, favorecendo um ciclo de criminalização direcionado aos mais pobres e, invariavelmente, aos negros.

“Fuga de Alcatraz” reflete parte dessa realidade ao apresentar um único personagem negro com certa relevância, um detalhe que reforça as observações anteriores. Contudo, o filme precisa ser analisado em seu contexto: Don Siegel (1912-1991) lançou essa produção em 1979, num período em que a percepção sobre representatividade ainda estava longe de ser um debate consolidado. O longa se sustenta na força de Clint Eastwood, que transforma Frank Morris em um ícone da ficção criminal. A trama acompanha sua trajetória até a prisão de segurança máxima localizada na Baía de São Francisco, onde foi encarcerado em 1960, após condenações por roubo e assalto à mão armada.

O roteiro de Richard Tuggle reconstitui a impressionante fuga orquestrada por Morris e registrada primeiramente no livro “Escape from Alcatraz: The True Crime Classic” (1963), de J. Campbell Bruce. Frank, com a ajuda dos irmãos Clarence e John Anglin, interpretados por Jack Thibeau e Fred Ward (1942-2022), idealiza um plano minucioso para escapar da fortaleza considerada inviolável. O filme de Siegel imprime a essa jornada um rigor narrativo que remete a epopeias clássicas, detalhando cada etapa do intrincado processo.

Desde a criação de cabeças falsas com gesso e fios de cabelo da barbearia, usadas para enganar os guardas, até a construção de uma balsa rudimentar feita de capas de chuva e blocos de madeira das aulas de carpintaria, cada movimento é meticulosamente planejado. A travessia das águas geladas, outrora considerada impossível, hoje é um desafio superado por atletas de triatlo, mas na época reforçava o caráter quase mítico da empreitada.

Siegel estrutura sequências que ressaltam não apenas a engenhosidade da fuga, mas também o ambiente inóspito da prisão e os personagens que a habitam. Entre os detentos, destacam-se figuras como Wolf, o agressivo presidiário interpretado por Bruce M. Fischer (1936-2018); Doutor, o esquizofrênico vivido por Roberts Blossom (1924-2011), que encontra na pintura uma forma de suportar a clausura; e o bibliotecário Inglês, papel memorável de Paul Benjamin (1938-2019), cuja presença fortalece a imagem de um homem negro intelectualizado e resoluto dentro daquele universo hostil. Esses personagens adicionam camadas ao enredo, tornando “Fuga de Alcatraz” não apenas um relato sobre uma evasão impossível, mas também um estudo sobre os códigos, as dinâmicas de poder e as complexidades da vida dentro dos muros de uma penitenciária de segurança máxima.

Filme: Fuga de Alcatraz
Diretor: Don Siegel
Ano: 1979
Gênero: Ação/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★