Abe Lucas está à deriva em “Homem Irracional”, e Woody Allen, mestre em explorar as armadilhas da irracionalidade, conduz a trama com sua habitual ironia. O cineasta já havia demonstrado sua afinidade com protagonistas em crise em títulos como “Celebridades” (1998) e “O Escorpião de Jade” (2001), além de “Scoop — O Grande Furo” (2006), livremente inspirado na obra do britânico Evelyn Waugh (1903-1966). Neste último, os dilemas entre ambição e moralidade se impõem com vigor, sempre flertando com o risco de se dissiparem diante de motivações que oscilam entre o admirável e o efêmero.
Entre as histórias que Allen concebeu, talvez esta seja a que melhor traduz sua vocação para um discurso intelectual provocativo, mantendo a leveza cínica que permeia sua filmografia. A narrativa joga luz sobre as falhas do sistema judiciário, traçando paralelos com turbulências da própria vida do diretor, cujos episódios controversos foram matéria-prima para a construção desse protagonista, um homem brilhante, mas assolado por um torpor existencial que o conduz a escolhas moralmente duvidosas.
Os tons quentes do outono em Nova Inglaterra, onde o filme se ambienta, são capturados com requinte pela fotografia de Darius Khondji. As nuances de laranja e verde criam um cenário acolhedor que contrasta com a inquietação interna do protagonista. O extenso monólogo inicial de Abe, embalado pela trilha jazzística do Ramsey Lewis Trio, estabelece um tom quase satírico, que se mantém ao longo da obra.
Joaquin Phoenix aproveita cada detalhe da performance para traduzir a desconexão de Abe com o mundo ao seu redor. Pequenos gestos, como um toque no cabelo ou um olhar oblíquo, evidenciam sua postura de deslocamento. Ao chegar à universidade onde lecionará filosofia, é recebido como uma estrela acadêmica, mas seu olhar vazio denuncia que a admiração dos outros pouco lhe diz respeito. Durante um coquetel de boas-vindas, no entanto, seu semblante se altera ao perceber o impacto de um ensaio seu entre os colegas, revelando que sua indiferença talvez não seja tão absoluta quanto parece.
É então que surge Jill Pollard, vivida por uma Emma Stone afiada, pronta para desestabilizar o frágil equilíbrio de Abe. O roteiro de Allen não demora a lançar seu protagonista em um dilema ético de peso, abrindo caminho para que o espectador o enxergue ora como vítima das próprias circunstâncias, ora como um homem condenado por suas próprias decisões. A forma como o diretor delineia esse percurso, sem concessões, provoca aqueles que encaram a existência como uma estrada previsível e sem desvios.
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