Poucas produções conseguem romper com a previsibilidade dos filmes de ação como esta adaptação de “Ghost in the Shell”, que, em 2017, resgatou um universo já consagrado, mas agora sob a ótica de Rupert Sanders. Ainda que a trama ressoe com elementos frequentes do gênero, o diferencial está no primor visual, ponto em que a releitura do mangá de Masamune Shirow se destaca.
A transição do quadrinho para o anime, e deste para o live-action, reforça a tendência de reciclagem de narrativas bem-sucedidas, convertendo um enredo consolidado em diversas plataformas em um espetáculo visual. A aposta de Sanders reside justamente na exuberância estética, com Jess Hall explorando ao máximo a computação gráfica, ampliando os limites da ambientação futurista. No entanto, a sofisticação técnica não camufla as questões mais profundas que a história suscita.
O enredo se desenrola em 2029, uma realidade que parece cada vez menos distante, onde aprimoramentos cibernéticos redefinem os parâmetros da existência humana. Nesse cenário, a tecnologia elimina a vulnerabilidade biológica, tornando obsoletas enfermidades e fatalidades antes inescapáveis. É nesse contexto que surge Mira, vítima de um ataque que a deixa à beira da morte e cuja sobrevivência é assegurada por um projeto inovador das Indústrias Hanka.
Seu cérebro é transplantado para um corpo sintético, tornando-a a primeira de sua espécie, uma fusão entre humano e máquina. Scarlett Johansson incorpora essa figura híbrida, cuja identidade oscila entre fragmentos de um passado nebuloso e a nova realidade imposta por seu renascimento artificial. A atuação da atriz enfatiza a complexidade dessa personagem, alguém que, apesar do poder físico extraordinário, se encontra dilacerada por incertezas sobre sua própria essência.
Designada à Seção 9, uma força especial contra o terrorismo, a Major, como é chamada, vê-se atormentada por reminiscências que desafiam a narrativa oficial de sua origem. Seu superior, Aramaki, interpretado por Takeshi Kitano, confia em sua capacidade operacional, mas suas inquietações são minimizadas pela doutora Ouelet, papel de Juliette Binoche, que justifica suas angústias como meros resquícios de um erro de programação.
No entanto, ao cruzar o caminho de Kuze, um enigmático terrorista vivido por Michael Pitt, a protagonista é levada a questionar tudo o que lhe foi contado. O embate com a verdade se torna inevitável: teria sua história sido deliberadamente apagada? A revelação gradual do mistério conduz a um dilema existencial que ultrapassa a ação convencional, tocando em questões filosóficas sobre consciência, memória e identidade.
Diferente do material original de Shirow, esta versão ocidentalizada enfatiza a jornada heroica sob uma ótica mais familiar ao público americano. A narrativa molda Mira como uma figura que se sacrifica pelo bem comum, reforçando o arquétipo do mártir redentor. A escolha de Scarlett Johansson para o papel, alvo de controvérsias ligadas à questão da representatividade, demonstra que a fidelidade à origem do personagem cedeu espaço a uma abordagem que prioriza a carga simbólica do protagonista. No ato final, a personagem abraça sua identidade e resgata sua trajetória pregressa, consolidando o conceito de que, mesmo reconstruídos, os heróis ainda carregam consigo cicatrizes e lembranças.
Embora tenha sido envolto em polêmicas, sobretudo em relação ao elenco, esse segundo longa de Rupert Sanders reafirma que a originalidade, muitas vezes, reside na reinterpretação. A produção, filmada na Nova Zelândia e ambientada em um universo inspirado na obra japonesa, exibe o paradoxo de um cinema que busca reinventar-se partindo de alicerces já estabelecidos. Em última análise, o maior mérito do filme talvez não seja reinventar “Ghost in the Shell”, mas sim utilizá-lo como veículo para refletir sobre os limites tênues entre humanidade e tecnologia, memória e manipulação, identidade e imposição. Uma história que, mesmo sob novas formas, ainda ecoa as inquietações de sua matriz original.
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