Um dos filmes mais caros da história: obra-prima subestimada de Darren Aronofsky está no Prime Video e você ainda não assistiu Niko Tavernise / Paramount Pictures

Um dos filmes mais caros da história: obra-prima subestimada de Darren Aronofsky está no Prime Video e você ainda não assistiu

Nenhuma adaptação literária para o cinema escapa de ajustes, pois transpor palavras para imagens implica reformulações inevitáveis. Esse desafio se amplia quando a base narrativa é um texto de natureza religiosa, carregado de simbolismo e aberto a múltiplas leituras. O filme de Darren Aronofsky, “Noé”, exemplifica essa complexidade. Seu enredo gerou reações divergentes, despertando o desagrado de setores mais conservadores e a admiração da crítica especializada.

Trata-se de uma abordagem que transforma um dos relatos mais conhecidos da tradição judaico-cristã em um épico de contornos filosóficos e visuais imponentes. A jornada do patriarca que recebe a incumbência de preservar a criação em meio ao iminente dilúvio é ressignificada, expandindo os elementos míticos do “Gênesis” para compor uma reflexão existencial sobre humanidade, fé e destino. Aronofsky se vale da liberdade artística para estruturar uma narrativa de tons grandiosos, onde a catástrofe serve como pano de fundo para um embate moral e psicológico profundo.

O que torna “Noé” fascinante é a coragem do cineasta em impor sua visão sem concessões, explorando nuances que frequentemente escapam das leituras convencionais do personagem. O roteiro, escrito em parceria com Ari Handel, neurocientista e colaborador de longa data do diretor, constrói um protagonista complexo, cujas ações não derivam apenas de sua virtude, mas também de um destino que lhe foi imposto.

O filme sugere que sua missão decorre menos de um merecimento pessoal e mais de sua linhagem direta com Set, o terceiro filho de Adão e Eva. Esse detalhe acrescenta camadas à narrativa, conferindo ao protagonista uma inquietação que ultrapassa o simples papel de mensageiro divino. A progressão da história conduz o público a um dilema ético, onde Noé se vê diante de decisões que põem em xeque sua própria humanidade. Enquanto a água toma conta do mundo, a tensão cresce, desembocando em um desfecho de intensidade emocional notável.

As divergências entre o relato bíblico e a interpretação de Aronofsky não comprometem a essência da história, mas conferem a ela um vigor dramatúrgico particular. O filme não pretende reconstituir fielmente o texto sagrado, e sim elaborar uma versão que dialogue com questões universais. Há quem se incomode com certas licenças poéticas, como a estética dos personagens, sempre dentro do padrão hollywoodiano, mas isso não diminui o mérito da obra.

O elenco contribui para a solidez do filme, com Russell Crowe entregando uma performance que equilibra força e tormento interno, enquanto Jennifer Connelly adiciona sensibilidade à dinâmica conjugal do casal central. Ray Winstone encarna Tubalcaim com uma presença feroz, representando a oposição à submissão irrestrita à vontade divina. Logan Lerman, como Cam, ilustra a rebeldia e os dilemas de um mundo em reconstrução, ao passo que Emma Watson imprime intensidade a Ila, sua personagem, cuja trajetória se entrelaça à de Noé de maneira decisiva.

Darren Aronofsky se sobressai ao reinventar uma narrativa milenar sem medo de provocar discussões, reafirmando que o cinema, quando exercido com inventividade, pode romper dogmas e desafiar convenções. “Noé” é uma aposta audaciosa, tanto estética quanto conceitualmente, e sua força reside exatamente na capacidade de suscitar reflexões além do espetáculo visual. Como um visionário que não teme a fúria das marés, o diretor finca os pés no território da experimentação e constrói um épico que, longe de ser um exercício de mera transposição, se transforma em um ensaio sobre a condição humana e seus paradoxos.

Filme: Noé
Diretor: Darren Aronofsky
Ano: 2014
Gênero: Ação/Drama/Épico
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★