Viver é um privilégio, mas quando a existência humana se converte em mercadoria com preço e prazo de validade, é sinal de que algo essencial se corrompeu ao longo do percurso civilizatório. O Estado, sobrecarregado por suas múltiplas atribuições, acaba por legitimar, ainda que indiretamente, a instrumentalização da vida alheia por agentes que operam à margem da lei, outorgando-se o poder de decidir quem deve ou não seguir respirando.
A morte passa a ser um ato burocrático, uma solução pragmática para qualquer inconveniente, executada sem remorso por aqueles que veem no extermínio um expediente corriqueiro. Nesse cenário distorcido, não seria improvável a ascensão de megacorporações especializadas na “eliminação de impurezas” — um eufemismo sombrio para a execução seletiva de indivíduos considerados problemáticos. No entanto, longe de conter a violência, tal abordagem fomentaria uma espiral perversa, onde criminosos cada vez mais audaciosos encontrariam estímulo para perpetuar suas próprias atrocidades.
A tentativa de combater o crime com mais crime é um paradoxo fadado ao fracasso. Por mais desafiador que seja o contexto social, a busca por soluções equilibradas e racionais deveria ser a prioridade. No entanto, há aqueles que lucram com o caos e preferem alimentar a lógica do “quanto pior, melhor” para obter vantagens, acumulando capital e influência à sombra da desordem. Nesse turvo panorama, emerge “Ava” (2020), um thriller dirigido por Tate Taylor que coloca sua protagonista em um jogo de sobrevivência no qual a moralidade é um conceito flexível.
Ava, vivida por Jessica Chastain, é uma assassina de aluguel que, sob a fachada de sofisticação e autocontrole, carrega o peso de uma existência fragmentada. Sua marca registrada? Conceder às vítimas uma última oportunidade de partir com dignidade, um detalhe que, para ela, transforma a execução em uma experiência quase lúdica. Entretanto, por trás desse verniz de controle, esconde-se uma mulher atormentada, cuja frieza é apenas uma máscara que começa a rachar.
O roteiro de Matthew Newton posiciona Ava em um território ambíguo, onde ela oscila entre a impassibilidade de uma profissional letal e as vulnerabilidades de uma mulher que busca redenção. É uma inversão intrigante para Chastain, que já havia explorado arquétipos femininos igualmente complexos, como a determinada Maya em “A Hora Mais Escura” (2012), dirigido por Kathryn Bigelow. Naquele filme, sua personagem perseguia obsessivamente Osama Bin Laden, refletindo a frieza meticulosa do aparato de inteligência dos Estados Unidos.
Já em “Os Olhos de Tammy Faye” (2021), Chastain encarnou outra mulher dilacerada por contradições, oferecendo uma performance que ressoa com as fragilidades de Ava. Aqui, a assassina de aluguel transita entre a ação implacável e momentos de introspecção, sugerindo que, apesar de sua aparente aceitação do destino, ela ainda luta contra os fantasmas de uma vida marcada pelo descontrole e pela solidão.
A cena de abertura estabelece esse contraste com maestria: Ava, em recuperação do alcoolismo e com um passado de delinquência juvenil, surge em uma nova missão. Vestindo um figurino meticulosamente planejado — batom roxo vibrante, pele alva, peruca loira e curta —, ela recebe um passageiro no aeroporto de Paris. A conversa entre os dois, carregada de tensão e subtexto, sugere uma interação sedutora, mas qualquer ilusão romântica se dissipa rapidamente.
Ao conduzi-lo para um local isolado, Ava assume seu papel com precisão cirúrgica, provando que, quando se trata de finalizar um contrato, não há hesitação. O que diferencia essa protagonista de tantos outros assassinos do cinema é a consciência latente de que sua trajetória é um beco sem saída. Ela sabe que não há redenção, apenas a ilusão dela.
As relações familiares adicionam mais camadas a esse drama de ação. O vínculo turbulento com a mãe, Bobbi (Geena Davis), e a irmã, Judy (Jess Weixler), coloca Ava em um dilema entre sua vida pregressa e a tentativa frustrada de reconstrução. Michael (Common), um antigo amor agora casado com Judy, adiciona outro nó emocional, reforçando a ideia de que Ava, apesar de sua independência aparente, é prisioneira de um passado que a impede de seguir adiante.
Seu mentor Duke (John Malkovich) representa a última âncora de estabilidade, mas a chegada de Simon (Colin Farrell), o novo peão nesse tabuleiro de traições e conspirações, sinaliza que o jogo se aproxima de seu desfecho. Simon não vê Ava como uma aliada, mas como uma peça descartável, e seu pragmatismo impiedoso transforma a caçada em algo pessoal.
Tate Taylor conduz “Ava” com uma abordagem estilizada, equilibrando ação e drama psicológico de maneira eficaz. O filme se sustenta na tensão crescente entre sua protagonista e os inimigos que se multiplicam ao seu redor, enquanto a narrativa mantém o espectador imerso em sua jornada de autodescoberta e destruição.
Embora o roteiro apresente algumas convenções típicas do gênero, a atuação magnética de Chastain e a presença imponente de Davis e Malkovich elevam o material, conferindo-lhe um peso dramático incomum para produções do tipo. No fim das contas, Ava pode até desejar mudança, ansiar por uma reconciliação tardia ou um caminho alternativo. Mas, como bem sabe, certos destinos são selados muito antes de termos a chance de reescrevê-los.
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