“Os Imperdoáveis”, comandado por Clint Eastwood, é frequentemente citado como um ponto de virada na história do faroeste, pois revê tradições que pareciam intocáveis e as apresenta sob uma ótica mais sóbria. A obra se inicia e se encerra com a figura solitária de um homem diante de um túmulo, capturada contra o céu alaranjado, uma imagem que sintetiza o legado do gênero: o pistoleiro silencioso, envolto em lendas e contradições. Em vez de reforçar os antigos encantos do oeste, o filme penetra nos alicerces dessa mitologia, convidando o público a refletir sobre a dimensão humana por trás das balas e das bravatas. Sem renunciar inteiramente à tradição, a narrativa questiona os desejos que nutrimos pelo espetáculo da violência e expõe o abismo entre a fama fabricada e o alto custo de cada disparo.
Localizado nos últimos suspiros do século XIX, entre as paisagens inóspitas de Wyoming e Kansas, “Os Imperdoáveis” traz personagens aprisionados pelos erros que os assombram. William Munny, vivido pelo próprio Eastwood, representa com precisão esse embate interior: outrora um facínora temido, agora sustenta a família criando porcos e buscando expiação. Contudo, a aparente redenção é interrompida quando o Schofield Kid — um rapaz de vista fraca e sonhos de se tornar um matador famoso — cruza seu caminho, implorando por ajuda numa missão que pagaria recompensas a matadores de aluguel. A jornada de ambos retira o verniz heroico do tiroteio, revelando o peso real de tirar uma vida e a ilusão construída em torno do pistoleiro lendário.
A produção não atenua o choque que a violência provoca. Há uma cena impactante em que o Kid, após executar um desafeto, sucumbe a um desespero irreprimível e se consola afundando no uísque. A bravata juvenil, tão comum em narrativas idealizadas, se dissolve em lágrimas, convidando o espectador a abandonar o fascínio automático pelas armas. Eastwood realça ainda a dualidade desse cenário no qual a violência tanto assusta quanto seduz. Assim, o longa-metragem desnuda a lógica ambígua que domina o faroeste, transformando a ação em reflexão sobre moralidade e poder.
Em Big Whiskey, a brutalidade encontra ainda outra face na figura do xerife Little Bill, um homem que enxerga o uso da força como instrumento de controle e vaidade. Ele cruza caminhos com Beauchamp, um escritor ingênuo que nutre uma visão quase poética das pelejas. Em uma sequência tensa, Little Bill, tomado por sua arrogância, entrega uma arma a Beauchamp e o provoca a usá-la. O confronto serve como alerta contra a idealização de uma violência que, embora soe empolgante nas páginas de relatos de segunda mão, causa terror genuíno quando se faz real. Essa interação aponta a disparidade entre o mito que alimenta corações e a experiência visceral que paralisa até o mais audacioso dos admiradores.
Faltam heróis tradicionais no enredo. Em lugar deles, há figuras complicadas, matando por dinheiro ou reputação, movidas por uma noção de justiça que nem sempre resistiria a um exame mais atento. Delilah, prostituta que sofre um ataque covarde e tem o rosto retalhado por um vaqueiro, é a faísca que desencadeia o efeito dominó de violência e vingança. Esse episódio expõe não só o sexismo arraigado, mas também o classismo daquela época. Entretanto, embora Eastwood se esforce para inserir críticas sociais, a ausência de discussões sobre a condição racial de Ned Logan, interpretado por Morgan Freeman, sugere lacunas no retrato histórico de um oeste marcado pela tensão que o período pós-Guerra Civil inevitavelmente impunha a um homem negro. Esse silêncio, sem dúvida, poderia ter aprofundado ainda mais o discurso sobre exclusão e hostilidade.
Apesar de tudo, o longa acerta ao reposicionar Clint Eastwood perante a própria lenda que ele ajudou a fundar. A imagem de Munny, que mal consegue montar em seu cavalo ou manusear um rifle sem hesitar, rompe com a onipotência do pistoleiro infalível. Ao mesmo tempo, não deixa de reavivar o mito ao lhe conceder instintos tão letais quanto os de seus papéis antigos. O tiroteio final, meticulosamente planejado, ilustra esse conflito: a violência se apresenta como maldade e catarse, chocando e seduzindo em igual medida. A cena sugere uma espécie de legado contraditório, instando o público a pensar na forma como o cinema constrói e alimenta essas lendas repletas de pólvora.
Quando “Os Imperdoáveis” foi lançado, consolidou o faroeste revisionista em outro patamar, colocando Eastwood no pódio de artistas que moldam a sétima arte com mão firme. Não apenas desmantela simbolismos antiquados, como também abraça os elementos mais instintivos do gênero, entregando o espetáculo que muitos esperam, mas não sem antes mostrar o grau de hipocrisia que costura cada diálogo e ação. O desenlace, com Munny partindo na escuridão após consumir sua retaliação derradeira, projeta um encerramento ao mesmo tempo melancólico e inevitável: o fim de um ciclo que, paradoxalmente, mantém viva a tradição que ele mesmo parece condenar. Assim, “Os Imperdoáveis” sobrevive como uma crônica sobre o fascínio inconsciente que a violência ainda exerce no imaginário, marcando em definitivo a história do cinema e do faroeste.
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