Baumgartner, de Paul Auster: entre a existência comum e o legado dos gênios

Baumgartner, de Paul Auster: entre a existência comum e o legado dos gênios

Em “Crime e Castigo”, de Dostoiévski, Raskólnikov divide a humanidade em duas categorias de indivíduos: os ordinários e os extraordinários. Sem uma explicação mais íntima, os indivíduos extraordinários podem parecer uma espécie de James Bond, com licença para matar, mas o entendimento profundo, dado pelo próprio Raskólnikov, é mais sutil. Em suas palavras, a ideia “consiste precisamente em que os indivíduos, por lei da natureza, dividem-se geralmente em duas categorias: uma inferior (a dos ordinários), isto é, por assim dizer, o material que serve unicamente para criar seus semelhantes; e, propriamente, os indivíduos, ou seja, os dotados de dom ou talento para dizer em seu meio a palavra nova”. E mais: ele apresenta uma ideia elaborada sobre os seres dotados de capacidades especiais, sem se atentar para os motivos intrínsecos que os determinam: “Aqui as subdivisões, naturalmente, são infinitas, mas os traços que distinguem ambas as categorias são bastante nítidos: em linhas gerais, formam a primeira categoria, ou seja, o material, as pessoas conservadoras por natureza, corretas, que vivem na obediência e gostam de ser obedientes. A meu ver, elas são obrigadas a ser obedientes porque esse é o seu destino, e nisso não há decididamente nada de humilhante para elas. Formam a segunda categoria todos os que infringem a lei, os destruidores ou inclinados a isso, a julgar por suas capacidades. Os crimes desses indivíduos, naturalmente, são relativos e muito diversos; em sua maioria, eles exigem, em declarações bastante variadas, a destruição do presente em nome de algo melhor”.

Paul Auster
Baumgartner, de Paul Auster (Companhia das Letras, 176 páginas, tradução de Jorio Dauster)

Feito esse preâmbulo, podemos analisar a personagem homônima do livro de Paul Auster, “Baumgartner”. Ele é um professor-pesquisador, escritor e crítico que perdeu a esposa e vive sozinho com seus pensamentos e ideias, com a memória das aventuras do passado e a expectativa de um relacionamento no futuro. Mas não esquece a esposa. Um espírito livre e profundamente inventivo, que, de alguma forma, fez a diferença na vida de Baumgartner, mas morreu muito cedo, de uma forma patética. Baumgartner é um ser especial, como geralmente são aqueles que se dedicam à erudição, ao conhecimento, à pesquisa ou à intelectualidade. Mas não chega a ser um dos indivíduos extraordinários de Raskólnikov. Assim como as subdivisões não explícitas da tese da personagem de Dostoiévski sugerem um infinito de seres com comportamentos entre uma categoria e outra, a personagem de Paul Auster, apesar de sua posição social ou intelectual diferenciada, ainda é um ser ordinário. Ele é um senhor do presente, pois: “A primeira categoria é sempre de senhores do presente, a segunda, de senhores do futuro. Os primeiros conservam o mundo e o multiplicam em número; os segundos fazem o mundo mover-se e o conduzem para um objetivo”.

A esposa de Baumgartner, que ele relembra com detalhes em suas memórias — Paul Auster constrói a personagem-título a partir da relação do casal, dois seres totalmente transversais em comportamentos, imergentes e penetrantes —, é o centro do romance e a pessoa distinta, com capacidades à frente de seu tempo e uma visão voltada para o futuro. Anna, a esposa, morreu num acidente ridículo. Depois de passar o dia na praia, decidiu tomar mais um banho de mar. Baumgartner podia ter impedido essa ação. Não quis. Ou melhor, não podia. Anna era um espírito livre. Fazia o que bem entendia. E era isso que ele amava nela. Depois de voltar ao mar, morreu por causa da arrebentação. As ondas, que cresciam e se tornavam perigosas, não a intimidaram. Ela era pura atitude: “Anna era assim, uma pessoa que fazia o que bem queria e não aceitava um não como resposta, impulsiva e voluntariosa”.

Ao conhecermos profundamente Baumgartner, entendemos a reflexão criativa de Auster ao definir Sy Baumgartner como um homem que sente a ausência e tenta se encontrar no presente. Mas, à medida que vivemos sua vida e suas lembranças, conhecemos Anna e entendemos que ela, sim, é extraordinária.

Sy faz parte de uma subcategoria elevada de homens ordinários, mas, ainda assim, pertence a esse grupo. Tem sabedoria, mas é uma engrenagem na grande máquina da existência, uma peça que ajuda o conjunto a funcionar. Quando somos apresentados ao talento de Anna, sua profunda capacidade de produzir literatura inspirada e cuidadosa, percebemos que sua ação no mundo tem como fim mudá-lo, torná-lo, nas palavras de Raskólnikov, um lugar com objetivo. Ela é uma “senhora” do futuro. Uma difusora da palavra nova. Baumgartner faz parte de uma estatística dostoievskiana peculiar e bem defendida pelo seu porta-voz Raskólnikov. Ele é a matéria da qual nascem as memórias dos gênios. Também porque possui percepção. Enquanto Anna, extraordinária, é uma espécie rara em extinção.

Na tese: “Em linhas gerais, as pessoas de pensamento novo, mesmo aquelas com um mínimo de capacidade para dizer ao menos alguma coisa nova, nascem em número inusitadamente baixo, até estranhamente baixo. […] A imensa massa de pessoas, o material, existe unicamente no mundo para, através de algum esforço, por algum processo até hoje misterioso, por meio de algum cruzamento de espécies e raças, finalmente fazer uma forcinha e acabar gerando em mil ao menos um indivíduo com autonomia, ainda que seja pouca. Talvez em cada dez mil nasça um (falo em termos aproximados, evidentes) com autonomia mais ampla, e em cada cem mil nasça um com autonomia ainda mais ampla. Dos indivíduos geniais nasce um entre milhões, e dos grandes gênios, os que dão acabamento à humanidade, nasce um após a passagem de muitos milhares de milhões na face da Terra”.

Baumgartner, coadjuvante de sua própria história, reconhece que, através da poesia, Anna mostra sua genialidade e se desloca de definições e conceitos. Não é sua formação que proporciona sua arte, mas algo de sua natureza, algo em sua alma. Anna é um evento inexplicável: “[…] não sendo a poesia um planeta e, sim, um pequeníssimo asteroide que percorre os espaços celestiais da literatura norte-americana, Anna encontrou seu lugarzinho no firmamento”.

É claro que há uma pequena distorção da essência do artigo (“artiguinho”) publicado por Raskólnikov, com o intuito de extrapolar o conceito de finitude das mentes realmente geniais, que são muito raras. Paul Auster parece querer contar uma história sobre literatura, usando sua personagem carismática e inteligente, Sy Baumgartner, que tem uma enorme compreensão de sua vida, sua situação e sua relevância no mundo. Ele quer dizer que os grandes romances são poucos e que a maioria dos autores são operários na construção de uma obra cuja função é o entretenimento. Eventualmente, alguém define o rumo da humanidade com algo que podemos chamar de clássico.

Solemar Oliveira

Doutor em Física, professor universitário e pesquisador com trabalhos publicados em periódicos acadêmicos nacionais e internacionais. Também atua como prosador, poeta, crítico e ensaísta. Autor dos romances “Desconstruindo Sofia” e “A Confraria dos Homens Invisíveis”, além do livro de contos “A Breve Segunda Vida de uma Ideia”, destacado entre os melhores de 2022. Seu livro “As Casas do Sul e do Norte”, publicado pela editora da Revista Bula, recebeu o prêmio Hugo de Carvalho Ramos, uma das mais tradicionais láureas literárias do Brasil.