A série da Netflix que faz uma releitura de ‘O Poderoso Chefão’

A série da Netflix que faz uma releitura de ‘O Poderoso Chefão’

A série “Yellowstone”, criada por Taylor Sheridan, tornou-se um fenômeno ao narrar a história da família Dutton. Há características dos filmes de faroeste, mas o ambiente é moderno com caminhonetes gigantes, cavalos estilosos e roupas de caubóis com grife. No Brasil, a quarta temporada foi lançada em janeiro pela Netflix, enquanto nos Estados Unidos a quinta parte já está no ar.

Há 130 anos, os Dutton controlam um rancho no estado de Montana, no noroeste gelado e montanhoso dos Estados Unidos. A fronteira foi conquistada há muito tempo, sem que os desbravadores tenham deixado a violência de quem se fez por meio da pilhagem e violação de povos originários. O espectador assiste à mistura de uma suposta tradição (família, fazendas) e comportamentos do capitalismo global.

A propriedade dos Dutton, dedicada à criação de gado, encontra-se sob assédio de dois grupos distintos. De um lado, investidores que enxergam a região como uma oportunidade de especulação imobiliária. Trata-se do olhar para frente, na figura do personagem Dan Jenkins. De outro, estão os indígenas que reivindicam a terra como um território ancestral e exploram economicamente os cassinos locais.

O conflito central da série reside no embate entre os novos tempos das finanças e a administração tradicional e autoritária de John Dutton, interpretado por Kevin Costner. A história se desdobra como uma alegoria dos Estados Unidos de 2025, ao evocar obviamente o lema “Make America Great Again” e o culto de uma tradição falsa, como forma de resistência a um mundo que muda rapidamente.

Situado próximo ao famoso parque nacional homônimo, o rancho Yellowstone assume na narrativa a representação de um paraíso perdido, uma ordem antiga cercado por forças que ameaçam sua continuidade. Quem vigia o território é a família Dutton, cuja trajetória ecoa a dos Corleone em “O Poderoso Chefão”, a trilogia da Francis Ford Coppola. Passamos do capitalismo dos gangsteres para o dos caubóis. 

Novo mundo velho

Não são poucas as referências na internet dizendo que Taylor Sheridan vendeu a série como uma espécie de “Godfather in Montana”. O paralelo não se limita ao eixo da trama, mas se estende à reprodução de diálogos conhecidos do filme de Coppola. Uma fala de Sonny Corleone — “Não conversamos de negócios na mesa de jantar” — reaparece em “Yellowstone”, para sublinhar a relação entre os dois universos narrativos.

No fundo, a série e o filme contam a história de uma família mergulhada em crise, e forçada a lidar com a transição de poder entre gerações. Se “O Poderoso Chefão” retrata a máfia siciliana transplantada para a Nova York de meados do século 20, “Yellowstone” se apropria dessa estrutura dramática para contar a luta dos Dutton contra as investidas do grande capital e das reivindicações indígenas.

A tradição familiar não é apenas um conjunto de valores, mas a base de um império cuja sobrevivência exige vigilância implacável. No caso dos Corleone, Nova York é o cenário de um jogo de poder no qual a máfia negocia sua posição dentro das engrenagens do capitalismo de então. A origem siciliana funciona como um refúgio mítico e um ponto de retorno — as regras distorcidas de lealdade e vingança ainda imperam.

Em “Yellowstone”, o rancho ocupa esse papel simbólico: um reduto de resistência contra o avanço de um mundo que se transforma sem cessar. Como a Genco Olive Oil Company dos Corleone, a fazenda é mais do que uma propriedade — é uma fortaleza e um campo de batalha. Para John Dutton, perder a terra significa não apenas o fim de seu império, mas a destruição da própria identidade de sua família.

Para evitar esse destino, ele governa com a mesma lógica de Vito Corleone: combina astúcia e brutalidade, silencia insubordinações e adota medidas extremas para manter seu domínio intacto. Premia uns poucos protegidos, pune quem comete o mais leve deslize. Como nos tempos do capitalismo em suas origens, o que está na mesa é a compra e venda de proteção. Quem manda, protege seus companheiros de jornada. 

Corleone de Montana

O que torna mais interessante a releitura de Sheridan é a forma como os personagens de “Yellowstone” espelham os de “O Poderoso Chefão”. O viúvo John Dutton assume o papel de Vito Corleone, o patriarca cuja liderança é inquestionável, mas que precisa preparar o terreno para sua sucessão. É a ideia semelhante de “Succession”, da HBO, que gera lutas e mais lutas nos mais baixos níveis de convivência entre pessoas.  

O filho mais velho, Lee, cumpre a função narrativa de Sonny Corleone. Rude e com força física, ele é a primeira vítima das guerras familiares. O caçula Kayce encarna Michael Corleone: o veterano de guerra que, a princípio, deseja se afastar dos negócios da família, mas é inevitavelmente sugado para dentro deles. A relação com Monica, sua esposa indígena, adiciona tensão racial e cultural à narrativa.

Jamie é o Fredo Corleone da série. Frágil, ressentido e sempre à margem da hierarquia familiar, a trajetória dele está marcada pela traição e pela busca desesperada pelo amore e reconhecimento do pai. A relação com a única irmã, Beth, é carregada de rancor e violência verbal. Há momentos de humor cruel.

Beth possui traços tanto de Connie Corleone, a única mulher em um mundo dominado por homens, quanto de Michael, pela inteligência estratégica e domínio sobre a lógica dos negócios. Com sofrimentos de perdas sucessivas, a começar pela morte da mãe, ela se torna uma figura brutalizada pela própria dinâmica familiar. Isso a leva a transitar entre a lealdade e a autodestruição.

Rip Wheeler funciona como filho adotivo de John Dutton e faz as vezes de Tom Hagen, mas sem a sofisticação diplomática do conselheiro dos Corleone. Se Tom é um advogado estrategista frio e calculista, somente usando a força no momento apropriado, Rip é um executor sem disfarces. Ele transmite a face mais sombria do rancho, maligna, ao operar no subterrâneo da história para garantir que a família permaneça no comando.

Da mesma forma que a trajetória dos Corleone gira em torno da progressiva corrosão de valores e conversão do império familiar em mecanismo de sobrevivência cada vez mais cruel, “Yellowstone” reforça a ideia de que não haveria lealdade sem sangue. Quando se sente ameaçada, a família apela para um simulacro chamado “tradição” e “honra”. Instaura-se uma guerra sem fim.

Capitalismo caubói

“O Poderoso Chefão” já sugeria que a máfia era uma versão alternativa do capitalismo americano. Um lado B da ideologia para a conquista da América e da prosperidade. “Yellowstone” torna essa ideia ainda mais explícita ao mostrar o rancho como um sistema de poder que opera com as mesmas lógicas de extorsão, da compra de influência e da eliminação física de adversários.

No mundo de John Dutton, a lei é ferramenta maleável, utilizada conforme a necessidade. O Estado aparece apenas como elemento externo e frágil, incapaz de regular as disputas por terra e dinheiro. Trata-se de um terreno fértil para o surgimento de milícias privadas, que se misturam às polícias locais. A sinalização é clara: o mundo está voltando ao estágio anterior à modernização e às sociedades reguladas.

Tal visão do mundo conecta “Yellowstone” à série “Terra Indomável” (2025), da Netflix, que narra a ocupação da região de Utah no século 19, vizinha de Montana. Se a trama de Sheridan é o ocaso do império familiar que resiste ao avanço do dinheiro, “Terra Indomável” retorna à gênese desse mesmo mundo. Vemos o choque de milícias mórmons e indígenas. Nos dois casos, a posse da terra depende de pilhagem sangrenta.

O que une “Yellowstone”, “O Poderoso Chefão” e “Terra Indomável” é a representação de um universo hobbesiano, um estado de natureza. A força dita regras, e a sobrevivência depende da capacidade de cada um impor sua própria ordem particular. O lema de Hobbes (a guerra de todos contra todos) define tais mundos onde a autoridade estatal é ilusória e a verdadeira governança se dá pela violência e pela lealdade a um grupo.

Se os Corleone manipulam o crime e os negócios em Nova York, com o uso da corrupção como ferramenta de poder, os Dutton enfrentam os inimigos nos vales de Montana com brutalidade semelhante e que não precisa de subterfúgios. Já “Terra Indomável” remete ao instante em que esse mundo foi moldado, quando a posse da terra era garantida pelo extermínio do outro. Esse é o universo do “Make America Great Again”.