Rebeldia, inquietação, a ânsia por um destino memorável e a necessidade de imprimir sentido à existência são os fios condutores de “Os Fabelmans”, um dos trabalhos mais confessionais de Steven Spielberg. O diretor levou décadas até reunir coragem para traduzir em imagens sua trajetória e seu encantamento pelo cinema, construindo uma narrativa sensível, estruturada a partir de uma família judaica cujos membros manifestam personalidades e aspirações distintas, sem que isso leve ao caos ou ao afastamento.
A essência desse filme já se inscrevia, de forma mais ou menos disfarçada, em algumas de suas realizações mais icônicas. Quem observar atentamente as entrelinhas de “E.T. O Extraterrestre” (1982), “A Lista de Schindler” (1993) ou até mesmo “Tubarão” (1975) e “Guerra dos Mundos” (2005) perceberá a recorrência de um fascínio por narrativas que extrapolam o ordinário. Aqui, esse impulso se revela sem subterfúgios, por meio de uma estrutura que combina memórias, recursos metalinguísticos e uma profunda reflexão sobre o olhar que transforma a realidade em ficção.
Mitzi Fabelman renunciou a uma promissora carreira como pianista para se dedicar ao casamento, mantendo apenas aulas particulares como um pálido vestígio do que poderia ter sido. Seu marido, Burt, é um engenheiro bem-sucedido que enxerga no cinema doméstico um mero passatempo. Já Sammy, o filho mais velho do casal, sintetiza as naturezas opostas dos pais. Ao levá-lo para assistir a “O Maior Espetáculo da Terra” (1952), obra de Cecil B. DeMille que retrata o lendário Ringling Bros-Barnum and Bailey Circus, eles, sem saber, desencadeiam uma transformação irreversível no garoto.
Spielberg e o roteirista Tony Kushner dedicam uma atenção especial ao momento em que o pequeno Sammy, vivido por Mateo Zoryon Francis-DeFord, absorve com intensidade cada detalhe do que vê na tela e, incapaz de conter o impulso criativo, reproduz o impacto de um desastre ferroviário usando seus brinquedos. O pai, cético, vê apenas desordem e desperdício, enquanto Mitzi reconhece ali um talento latente. Essa oposição, brilhantemente incorporada por Michelle Williams e Paul Dano, orienta grande parte do filme, evidenciando as forças que moldam o protagonista. Já adolescente, Sammy, interpretado por Gabriel LaBelle, dirige seus colegas escoteiros em um curta sobre a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), revelando-se um cineasta nato desde os primeiros passos. A trajetória parecia traçada.
A intuição que permitiu a Spielberg se conectar tão profundamente ao público, convertendo premissas improváveis em sucessos retumbantes, nunca foi mero acaso. Sua capacidade de captar o espírito de uma época e de traduzir anseios coletivos em experiências cinematográficas inesquecíveis fez dele um mestre da indústria cultural. Mas o que torna “Os Fabelmans” uma obra singular é o modo como o diretor se despe de artifícios para expor, com rara sensibilidade, as origens desse olhar perspicaz. Entre recordações, referências e um amor inegociável pelo ofício, Spielberg retorna ao ponto onde tudo começou, reconstruindo, com a precisão de um artesão e a emoção de um sonhador, a gênese de seu fascínio pelo poder das histórias bem contadas.
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