O enredo de “Identidade”, dirigido por Rebecca Hall, parece, à primeira vista, simples: Irene (Tessa Thompson) e Clare (Ruth Negga), amigas de infância, reencontram-se após anos de afastamento. No entanto, à medida que retomam o convívio, revelam inquietações profundas, carregadas de tensões identitárias e dilemas íntimos que desafiam sua percepção do mundo e de si mesmas.
Ambas são mulheres negras de pele clara, cujo fenótipo lhes permite passar por brancas em uma sociedade onde a aparência é um fator determinante de privilégio ou exclusão. No Brasil, a concepção racial se baseia em nuances culturais e históricas que tornam essa lógica mais difusa, enquanto nos Estados Unidos vigorou, por décadas, a chamada “regra da gota de sangue”, que classificava como negra qualquer pessoa com ascendência africana. Paradoxalmente, essa categorização fomentou a luta dos afro-americanos por direitos civis, ainda que dentro de uma estrutura social segregacionista.
Situado em 1929, o longa se baseia na obra de Nella Larsen (1891-1964), autora que capturou com precisão as complexidades raciais da época. Décadas após a abolição da escravidão, os Estados Unidos ainda estavam imersos em uma rígida separação racial, cuja herança persiste. O assassinato de Martin Luther King, em 1968, simbolizou a brutal repressão contra os que ousavam questionar esse status quo. Hoje, quase um século após a publicação do romance, a violência racial continua a assombrar o país, manifestando-se em tragédias contemporâneas que expõem a fragilidade das conquistas sociais.
Hall, em sua estreia como diretora, constrói um filme de contrastes visuais e narrativos, evidenciando a dualidade entre as protagonistas. Irene, apesar de sua pele clara, reconhece e aceita sua posição na sociedade racista em que vive, evitando confrontos. Clare, por outro lado, renega suas origens para se inserir em um universo que a rejeitaria se soubesse a verdade. Seu cabelo platinado – exaltado pela fotografia em preto e branco – e sua postura refinada reforçam essa construção, enquanto seu casamento com John, um homem branco e socialmente privilegiado, consolida a ilusão que ela tenta sustentar. Contudo, as entrelinhas sugerem que ele pode intuir sua ascendência, ainda que escolha ignorá-la por conveniência.
Para Hall, “Identidade” transcende a adaptação literária e se torna um projeto pessoal. Ao descobrir que um de seus avós era negro e que sua família renegara essa herança, a diretora encontrou na obra de Larsen um espelho de sua própria trajetória. O filme, assim, adquire uma dimensão quase autobiográfica, funcionando como um exercício de resgate e reconciliação com um passado velado. A abordagem estética, impecável em sua composição visual, adiciona camadas à narrativa, conferindo-lhe um lirismo que a torna ainda mais impactante. A escolha pelo preto e branco, frequentemente utilizada para temas históricos e introspectivos – como em “Roma” (2018), de Alfonso Cuarón –, reafirma o caráter atemporal da trama.
A trilha sonora de Devonté Hynes, conduzida com sutileza ao piano, reflete a simbiose entre Clare e Irene, evidenciando que, por mais distintas que sejam suas escolhas, ambas são prisioneiras das mesmas estruturas. Em um desfecho trágico, a fragilidade da identidade construída se estilhaça, trazendo consequências irreversíveis. “Identidade” não apenas revisita uma época que deveria estar extinta, mas alerta para o perigo de sua permanência sob novas formas. Um filme que desafia, instiga e não permite complacência.
★★★★★★★★★★