Se você já se sentiu sozinho, este filme da Netflix vai te tocar profundamente Divulgação / Caramel Films

Se você já se sentiu sozinho, este filme da Netflix vai te tocar profundamente

Seria possível corrigir erros do passado quando estes moldaram irrevogavelmente o destino de alguém? Em “O Vazio do Domingo” (2018), dirigido pelo espanhol Ramón Salazar, Anabel se vê forçada a um duplo acerto de contas com uma história que preferia manter enterrada. Durante um jantar requintado em sua mansão, onde divide a vida com o marido e a filha, a presença inesperada de uma desconhecida transforma a noite em algo irreversível.

Essa intrusa, no entanto, não é uma qualquer: trata-se de Chiara, interpretada por Bárbara Lennie, a filha que abandonou três décadas antes e que agora, sob o disfarce de garçonete, infiltra-se em sua casa. A aparição não é um pedido de reparação, tampouco uma súplica por afeto ou bens materiais. O que Chiara deseja é simples e ao mesmo tempo enigmático: que Anabel a acompanhe até um remoto vilarejo na fronteira entre Espanha e França, onde viveram juntas quando ainda formavam uma família, e que permaneça lá ao seu lado por dez dias. A proposta vem carregada de um suspense inquietante, e o público logo percebe que aquele reencontro tardio está longe de ser um gesto inocente.

A intenção real de Chiara permanece oculta, mas algo parece evidente: sua mãe não tem escolha. O passado, desenterrado à força, cobra sua dívida de maneira implacável. Anabel subestimou o peso da própria ausência, o impacto do abandono que moldou a solidão da filha desde a infância. Sua única opção é ceder à exigência e partir para essa viagem emocionalmente carregada. A relação entre as duas se desenvolve num clima carregado, em que as nuances dos diálogos curtos e da fotografia sombria — dominada por tons de verde-musgo, azul-petróleo e cinza-chumbo — acentuam a tensão constante. A distância emocional entre mãe e filha se reflete na composição visual do filme, onde cada olhar diz mais do que qualquer palavra. Susi Sánchez, em uma interpretação precisa e controlada, constrói Anabel como uma mulher presa em sua própria frieza, enquanto Chiara, calculista e indecifrável, emerge como a sombra de tudo o que foi negado a ela.

A narrativa se intensifica com uma sequência emblemática: Chiara, num aparente gesto de compaixão, resgata um cão coberto de lama e convence a mãe a ajudá-la a limpá-lo. O que parece um momento de reaproximação logo se revela uma provocação cruel. Molhando Anabel deliberadamente, Chiara prolonga o desconforto da mãe com um sadismo contido, testando seus limites sem jamais perder a pose. O jogo de poder está estabelecido, e Anabel começa a perceber que essa viagem não será apenas um exercício de nostalgia. Quando questiona se a filha pretende continuar com essas provocações, recebe apenas o silêncio como resposta — um silêncio que reverbera muito mais do que qualquer confronto direto.

O cerne do filme, então, se revela: o que define a maternidade? Seria Anabel incapaz de amar Chiara, ou apenas despreparada para o papel que lhe coube? Em um segundo casamento, cercada do conforto que sempre desejou, ela pôde ser mãe sem peso ou conflitos, oferecendo à nova filha uma relação isenta de ruídos e ressentimentos. Para Chiara, no entanto, Anabel foi apenas um obstáculo a ser superado. A comparação com Medeia se torna inevitável, ainda que subvertida: se na tragédia grega a mãe assassina os filhos por vingança, aqui o abandono foi a forma encontrada para eliminar Chiara de sua vida. E esse afastamento, agora, cobra um preço que não pode mais ser ignorado.

A revelação do verdadeiro motivo por trás do pedido de Chiara lança uma sombra ainda mais perturbadora sobre a trama. Doente terminal, ela conduz a mãe a um último ato que sela definitivamente sua história. Em uma cena que combina lirismo e brutalidade, as duas entram juntas em um lago, despindo-se de tudo o que as separou por tantos anos. Chiara murmura algo ao ouvido de Anabel antes de ser tomada nos braços maternos. O que se segue é devastador: ao que tudo indica, a mãe finalmente assume o papel que lhe coube desde o início, mas o faz da maneira mais cruel possível, extinguindo a vida que um dia recusou. O afogamento não é apenas um gesto final, mas a culminação de um destino trágico, um ajuste de contas em que amor e horror se entrelaçam de forma irreparável.

Visualmente deslumbrante, “O Vazio do Domingo” constrói sua força naquilo que não é dito, na lentidão calculada de cada cena, nos silêncios carregados de significados. Sem se render a sentimentalismos fáceis, o filme expõe a maternidade como um vínculo tão poderoso quanto perigoso. Anabel poderia ter evitado ser mãe? Talvez. Mas, ao escolher o caminho mais cômodo, garantiu que um dia fosse confrontada pelo peso insuportável de sua decisão.

Filme: O Vazio de Domingo
Diretor: Ramón Salazar
Ano: 2017
Gênero: Drama/Mistério
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★