Poucas obras no cinema americano atingiram a grandiosidade e o rigor histórico de “Malcolm X”, em que Spike Lee constrói um retrato meticuloso e multifacetado de um dos líderes mais incendiários do século XX. Com um tempo de duração que ultrapassa três horas, o filme não se entrega à pressa e se dedica a desdobrar, camada por camada, a trajetória de Malcolm Little (1925-1965). Natural de Omaha, no Nebraska, ele vê sua infância ser marcada pela violência e pela segregação. Filho do pastor Earl Little (1890-1931), seguidor das ideias separatistas de Marcus Garvey (1887-1940), cresce sob a sombra do racismo institucionalizado. A brutal morte do pai, um crime brutalmente disfarçado de acidente ferroviário, e a desestruturação da família acabam lançando o jovem em um sistema que, de maneira velada, perpetua o confinamento social dos negros, impedindo sua ascensão e forçando-os a se conformar com funções servis.
Mesmo sendo um estudante brilhante, Malcolm é desencorajado a almejar profissões de prestígio e empurrado para ocupações braçais, como a carpintaria — a mesma que, ironicamente, dizem ter sido praticada por Jesus. Esse choque de realidade alimenta a revolta latente que se tornará o estopim para sua guinada radical. Forçado a sobreviver em um mundo que o recusa, ele se afunda no submundo de Nova York, onde assume o apelido de Red e se envolve em atividades criminosas. Trafica drogas, explora mulheres e aproveita os excessos da vida boêmia, até que sua sorte se esgota. Sua prisão não é apenas pelo que fez, mas pelo fato de ter cometido crimes ao lado de mulheres brancas, o que lhe garante uma sentença desproporcionalmente severa. Entre os muros da cadeia, no entanto, acontece sua metamorfose definitiva: guiado pelos escritos de Elijah Muhammad (1897-1975), abraça o Islã, adota o nome de Malik el-Shabazz e dá início ao percurso que o transformará em ícone do ativismo negro.
A transformação de Malcolm X é retratada por Spike Lee com uma força narrativa poucas vezes vista. Se na juventude Denzel Washington confere ao personagem um ar quase cômico, com trejeitos espalhafatosos e roupas extravagantes, após a conversão ele se torna uma figura imponente, marcada por um senso de propósito inflexível. Ao contrário de Martin Luther King Jr. (1929-1968), cuja abordagem pacifista era ancorada na fé cristã, Malcolm X se molda na radicalidade e na rejeição do status quo, aproximando-se da postura combativa de Muhammad Ali (1942-2016), que trilhou caminho semelhante ao seu. A interpretação de Washington confere nuances à jornada, revelando tanto a chama da indignação quanto a clareza estratégica que consolidou sua liderança.
Lee não se contenta em apenas narrar uma biografia, mas traduz visualmente a intensidade do pensamento e da oratória de Malcolm X, sem suavizar suas contradições. O cineasta evita a armadilha de glorificá-lo de forma simplista, permitindo que o espectador enxergue as complexidades de um homem que oscilava entre o confronto e a busca por uma solução definitiva para a opressão racial. Angela Bassett, no papel de Betty Shabazz (1934-1997), surge como um contraponto essencial, equilibrando o fervor de Malcolm com uma presença mais ponderada. O filme não se limita a um estudo de personagem, mas se impõe como uma obra que dialoga com as tensões raciais americanas, passadas e presentes. A história de um homem que, a despeito das barreiras, se recusou a aceitar um destino imposto e, com todas as consequências, redefiniu a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos.
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