Otto Anderson nos soa familiar. Em “O Pior Vizinho do Mundo”, dirigido por Marc Forster, ele encarna o arquétipo do viúvo solitário e rabugento, cuja aversão à felicidade alheia parece ser tão natural quanto sua rotina inflexível. No roteiro de David Magee, inspirado diretamente na abordagem de Hannes Holm em “Um Homem Chamado Ove” (2015) — adaptação do romance homônimo de Fredrik Backman —, cada traço de Otto é delineado com precisão, tornando-o tanto um reflexo da amargura quanto um testemunho da persistência do afeto.
Embora sua jornada evoque a melancolia social de “Eu, Daniel Blake” (2016), de Ken Loach, ou a introspecção de “As Confissões de Schmidt” (2002), de Alexander Payne, é a presença de Tom Hanks que dissipa qualquer comparação simplista. Com sua habitual maestria, Hanks transcende o clichê do velho mal-humorado, transformando Otto em um personagem ao mesmo tempo exasperante e cativante. Desde seus primeiros momentos em cena, ele se apropria do papel de forma tão singular que faz com que a interpretação de Rolf Lassgård na versão sueca se torne apenas uma referência distante.
A essência de Otto se revela em gestos sutis, como na sequência em que visita a loja Busy Beaver em busca de uma corda de exatos um metro e sessenta e cinco centímetros. A trivialidade do ato é interrompida por um vendedor bem-intencionado que oferece ajuda, prontamente recusada. A transação no caixa se torna um impasse burocrático: o sistema só aceita vender por metros inteiros, e Otto se recusa a pagar por dois metros. Essa cena encapsula seu senso inflexível de justiça e sua relutância em ceder, elementos centrais de sua personalidade.
O equilíbrio entre humor e melancolia se manifesta com força nessa interação, antecipando os muitos momentos em que Otto será confrontado por uma vizinhança que insiste em não deixá-lo sucumbir à própria solidão. Forster posiciona o protagonista em um microcosmo peculiar: uma rua sem tráfego de veículos, onde os moradores, ameaçados de despejo pela construtora Dye & Merica, resistem à gentrificação iminente. Nesse ambiente, entra em cena Marisol Mendes, cuja chegada ao bairro inaugura uma nova dinâmica na vida de Otto e dos que o cercam. Para aqueles familiarizados com a obra original de Backman ou com a adaptação sueca, o arco narrativo não será surpreendente, mas a execução de Forster, ao combinar a taciturna amargura de Otto com a vibrante humanidade de Marisol, confere frescor à história.
O longa não hesita em abordar a dor de Otto de forma direta. Repetidas vezes, ele tenta pôr fim à própria existência, mas suas tentativas são frustradas por acidentes domésticos ou pela presença onírica de Sonya, sua falecida esposa, que, de maneira sutil e quase etérea, ainda permeia seu cotidiano. Os flashbacks que nos transportam à juventude do protagonista conferem à narrativa um lirismo inesperado. Truman Hanks, filho de Tom Hanks, e Rachel Keller interpretam os jovens Otto e Sonya, respectivamente, e suas cenas adicionam uma textura emotiva que aprofunda a construção do personagem. É nesse contexto que a presença do livro “O Mestre e Margarida” (1967), de Mikhail Bulgákov, surge como um símbolo da batalha entre destino e livre-arbítrio, um conflito que define Otto.
A relutância de Otto em aceitar a bondade que o cerca se choca com a obstinação de Marisol, interpretada com autenticidade por Mariana Treviño. Assim como Sonya, Marisol personifica um altruísmo resistente, que não se abala diante da dureza do protagonista. Suas refeições caseiras, sua insistência e sua espontaneidade quebram, aos poucos, as defesas de Otto, permitindo que ele se reconecte ao mundo. Essa transformação se estende a outras relações: a amizade inesperada com um gato de rua, a conexão com um garoto trans e a reaproximação de antigos vizinhos consolidam a redenção de Otto sem recorrer a sentimentalismos excessivos.
Forster conduz essa jornada de maneira cuidadosa, preservando a amargura inicial de Otto sem torná-lo insuportável e permitindo que sua evolução ocorra de forma orgânica. “O Pior Vizinho do Mundo” não reinventa a roda, mas ressignifica um tema atemporal: a necessidade de pertencimento. Otto não se desfaz de sua rigidez, mas aprende que, mesmo em um mundo que muitas vezes lhe parece caótico e indiferente, ainda há espaço para pequenas doses de calor humano.
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