Revisitar o acidente do voo 571 da Força Aérea Uruguaia, ocorrido em 13 de outubro de 1972, pode parecer, à primeira vista, uma tarefa redundante. A tragédia, que vitimou 29 pessoas e deixou 16 sobreviventes isolados em um dos ambientes mais hostis do planeta, já foi amplamente documentada e debatida. No entanto, em “A Sociedade da Neve”, J.A. Bayona encontra uma abordagem estética e emocional que justifica essa nova incursão. Sua direção não se limita à reconstituição histórica; ele entrega uma obra cinematográfica de imensa força visual e psicológica, ressignificando o evento com rara intensidade e profundidade narrativa.
A essência do filme reside na maneira como Bayona contrapõe a vastidão inóspita da paisagem com a fragilidade humana. A direção de fotografia de Pedro Luque traduz essa dicotomia em imagens de grande impacto: a imensidão branca da neve, iluminada por um sol ora opressor, ora melancólico, acentua o isolamento dos personagens. Close-ups revelam expressões marcadas pelo frio e pelo desespero, enquanto planos abertos reforçam a insignificância humana diante da natureza. Filmado em locações reais nos Andes e na Sierra Nevada espanhola, o longa transforma a montanha em uma antagonista silenciosa e implacável, cuja presença constante dita as regras da sobrevivência.
Baseado no livro homônimo de Pablo Vierci, publicado em 2009, o roteiro assinado por Nicolás Casariego, Jaime Marques e Bernat Vilaplana resgata a história a partir do olhar daqueles que viveram e daqueles que partiram. A narrativa confere vozes aos mortos, permitindo que suas histórias ressoem e transcendam a tragédia. Mais do que um relato de luta e resistência, o filme se constrói como um testemunho emotivo sobre laços humanos, culpa e memória.
Diferente de “Vivos” (1993), de Frank Marshall, que enfatizava o aspecto de sobrevivência, Bayona investe na humanização das vítimas antes da queda do avião. Momentos de alegria e esperança são entrelaçados à narrativa, como a partida de rúgbi dos jogadores do Old Christians Club, ressaltando as personalidades individuais dos personagens. Roberto Canessa, interpretado por Matías Recalt, se destaca como um líder pragmático, enquanto Numa Turcatti, vivido por Enzo Vogrincic, emerge como a consciência moral do grupo. Essas nuances contribuem para um retrato mais profundo dos protagonistas, reforçando a dimensão humana do drama.
Com um olhar meticuloso e sensível, Bayona reconstrói a história sem recorrer a sentimentalismos baratos, mas com uma carga emocional que ressoa muito além da tela. “A Sociedade da Neve” não apenas revisita um dos episódios mais impactantes do século 20, mas também o reinsere na consciência contemporânea com uma abordagem visual e narrativa que amplia seu significado. O filme se consolida não apenas como uma recontagem da tragédia, mas como um poderoso ensaio sobre a resiliência e a natureza da existência humana.
★★★★★★★★★★