Thriller com Amy Adams e Gary Oldman inspirado no estilo de Hitchcock, na Netflix Divulgação / Netflix

Thriller com Amy Adams e Gary Oldman inspirado no estilo de Hitchcock, na Netflix

A pandemia ofereceu um álibi perfeito para nos refugiarmos em hábitos que oscilam entre o prazer e a autossabotagem: esvaziamos garrafas de vinho sem culpa, nos rendemos ao conforto das entregas de comida e, entre um e outro devaneio de isolamento, revisitamos livros e filmes há tempos negligenciados. É nesse contexto de clausura que Anna Fox, a psicóloga de Amy Adams em “A Mulher na Janela”, se torna uma figura inquietantemente familiar.

Joe Wright subverte qualquer expectativa de um thriller convencional ao desconstruir, pouco a pouco, a segurança do olhar do espectador. Sob o peso do talento avassalador de Adams, somos lançados à vertigem da existência de Anna, uma mulher que se tornou prisioneira de sua própria mente, sobrevivendo das migalhas de realidade filtradas pela janela de sua casa. Se o romance best-seller de A.J. Finn já evocava o suspense psicológico de Hitchcock, o roteiro de Tracy Letts reforça essa herança ao destilar a tensão com precisão cirúrgica, tornando cada cena um intrincado jogo de percepção e paranoia.

Wright conduz o espectador pelos labirintos da psique de Anna, uma mulher assolada por traumas que se manifestam em agorafobia e delírios incessantes. Sua rotina solitária se desestabiliza quando, do outro lado da rua, ela testemunha um evento que parece ser um crime. Mas será que seus olhos enxergam a verdade, ou apenas mais um reflexo distorcido de sua mente fragilizada? A fragilidade de sua sanidade torna a verdade tão fugidia quanto perturbadora.

A cinematografia de Bruno Delbonnel transforma o espaço de Anna em um universo de clausura física e psicológica. Os tons terrosos da fachada de arenito de sua casa — um ícone da paisagem nova-iorquina — se mesclam ao interior sufocante, onde Adams surge como um espectro de si mesma: vestindo pijamas desbotados, a pele translúcida, os cabelos ruivos desgrenhados, evocando uma presença quase fantasmagórica. A janela imensa se torna sua única conexão com o mundo exterior, um portal que tanto lhe revela quanto lhe engana.

É em meio a esse torpor que surge Ethan Russell, o jovem vizinho interpretado por Fred Hechinger, trazendo consigo um presente trivial: sabonetes de lavanda. Pequeno gesto, grande abalo. A visita do garoto desperta em Anna ecos de um passado não resolvido. Sua relação fracassada com Ed (Anthony Mackie, em aparições ambíguas) e a ausência da filha são feridas abertas que ela compartilha, ainda que relutante, com seu terapeuta, vivido por Tracy Letts. Ethan, por sua vez, parece carregar seus próprios segredos, sua postura oscilando entre a fragilidade e um desconforto difícil de decifrar.

Os pais do garoto, Jane (Julianne Moore) e Alistair (Gary Oldman), entram em cena para complicar ainda mais o jogo de ilusões. Se o primeiro encontro entre Jane e Anna sugere um instante de empatia e confidência inesperada, a interação com Alistair é carregada de tensão. Quando Anna, no auge do desespero, o acusa de um crime, a narrativa mergulha de vez no domínio da incerteza. Seria a protagonista uma vítima incompreendida ou apenas mais uma narradora nada confiável? A resposta se esconde em uma reviravolta que reforça o caráter farsesco do longa, ampliando a sensação de que nada é o que parece.

A substituição de Julianne Moore por Jennifer Jason Leigh no papel de Jane serve como um golpe visual certeiro, desconcertando ainda mais a percepção da protagonista — e do público. Quando novos acontecimentos emergem da penumbra, fica claro que há algo de profundamente perturbador por trás da família Russell. A chegada de um novo personagem fornece algumas respostas, mas as entrelinhas revelam algo ainda mais inquietante: o terror cotidiano e banal, aquele que se insinua silenciosamente até ser tarde demais para reconhecê-lo.

“A Mulher na Janela” pode ser lido sob múltiplas perspectivas: uma metáfora cruel sobre a fragilidade feminina e a predisposição social a desacreditar mulheres emocionalmente abaladas; uma reflexão sobre o isolamento urbano e o abismo que separa vidas que coexistem sem se tocar; ou mesmo um estudo melancólico sobre a empatia e a solidão. No fim, a grande revelação do filme não está apenas no mistério que se desenrola, mas na constatação de que a vulnerabilidade humana nos iguala. E que, por mais assustador que seja encarar o mundo lá fora, há algo ainda mais aterrador nos inimigos invisíveis que carregamos dentro de nós.

Filme: A Mulher na Janela
Diretor: Joe Wright
Ano: 2021
Gênero: Mistério/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★