A transição da adolescência para a vida adulta consegue ainda mais traumática que a virada da infância para essa fase em que tudo se transforma num motivo para brigar. Como sói acontecer quase sempre, no momento em que parece que estamos dominando a situação, segurando o leme com firmeza diante de um oceano de possibilidades pouco alvissareiras, chega a hora de singrar mares muito mais profundos, muito mais revoltosos, dos quais ninguém escapa e que conduzem a um porto a que se desembarca de maneiras as mais diferentes, em pouco tempo ou depois de uma viagem algo sossegada ou francamente desafiadora.
A experiência que se adquire na etapa anterior é, por óbvio, muito apreciada, mas a verdade é que por volta dos dezoito anos, se apropriam do espírito humano ímpetos que, por mais estimulante que tenha sido a aurora de seu tempo, não poderia se libertar sem que pagasse um preço alto demais. É por razões como essas que todos amam Peter Parker, e nosso herói está irretocável em “Homem-Aranha: Sem Volta para Casa”, decerto o filme que mais lembra as histórias em quadrinhos que faziam muito adolescente voar para a banca de jornal mais próxima, ávido por saber o que Stan Lee (1922-2018) e Steve Ditko (1927-2018) poderiam ter feito de novo. Fica evidente no ótimo trabalho de Jon Watts a intenção de homenagear Lee e Ditko, nessa ordem, bem como não há quem duvide que, além de ser o maior personagem da Marvel, o fotógrafo do Clarim Diário é o xodó do homem que emprestou alma a um negócio um tanto burocrático, criando assim uma lenda.
O roteiro de Chris McKenna e Erik Sommers aproveita o final de “Homem-Aranha: Longe de Casa” (2019), também dirigido por Jon Watts, lembrando o público que Quentin Beck, o vilão Mysterio vivido por Jake Gyllenhaal, havia revelado a identidade do sujeito por trás da malha azul e vermelha. Watts transforma numa comédia rasgada a fuga de Parker e Mary Jane, sua companheira inseparável por cima de prédios e viadutos, procurando refúgio na casa de Ned Leeds, o amigo de todas as horas. Tamanha reviravolta atinge os três com a mesma força, eles perdem a vaga no MIT, e então o nono longa da franquia começa a apresentar o enredo da vez.
Ainda que Tom Holland, Zendaya e Jacob Batalon brilhem, aqui, os antagonistas ganham mais contorno e tipos ambivalentes a exemplo do Doutor Estranho de Benedict Cumberbatch vêm à superfície na pele de falsos messias, junto com Doutor Octopus, de Alfred Molina, e o Duende Verde. Numa trama de mocinhos de vinte e poucos anos, Willem Dafoe rouba a cena com um espetáculo de agilidade e vigor, e igual comentário se faça acerca de Marisa Tomei sob May Parker, a célebre Tia May. A condução flagrantemente distópica que Watts imprime a “Homem-Aranha: Sem Volta para Casa” insinua que talvez não haja mais lugar no mundo para o romantismo de Peter Parker. Mas, no cinema, nunca há de faltar espaço para um elenco cheio de talentos tão plurais.
★★★★★★★★★★