O poderoso chefão coreano: novo filme de Kim Seong-je acaba de chegar à Netflix e já é o mais visto do mundo na atualidade Divulgação / Netflix

O poderoso chefão coreano: novo filme de Kim Seong-je acaba de chegar à Netflix e já é o mais visto do mundo na atualidade

Para o bem e para o mal, organizações que peitam o Estado e impõem sua própria lei, espalhando o terror por entre cidadãos honestos vêm despertando verdadeiro fascínio em espectadores do mundo todo, e não é de hoje. Talvez o exemplo mais definitivo a esse respeito seja a trilogia “O Poderoso Chefão” (1972-1990), de Francis Ford Coppola, em que um gângster que enverga ternos de grife reúne em torno de si poderes para além de sua numerosa gangue e estende seus tentáculos por sobre todo um país.

Kim Seong-je faz de “Bogotá: Cidade dos Perdidos” o seu “O Poderoso Chefão” particular, um “O Poderoso Chefão” sem nada do glamour do romance policial publicado por Mario Puzo (1920-1999) em 1969, conferindo à história a natureza de um épico despretensioso, elaborado com denodo sobre a figura do protagonista e dos tipos diabólicos que o rodeiam. Kim une elementos de uma das melhores franquias de todos os tempos a duas das vertentes mais criativas da arte cinematográfica contemporânea — a sul-coreana e a da Colômbia —, obtendo um todo potente, coeso, que surpreende até o mais pessimista dos espectadores.

A Coreia sempre viveu sob tensão constante, cenário que se agravou muito a partir de 1950, quando da eclosão de uma sequência de conflitos armados ao longo dos quais os exércitos do Norte invadiram a porção meridional. A Guerra da Coreia só veio a cabo três anos depois, graças a um armistício. Tomando a história oficial por base, a nenhum dos dois foi conferida a vitória, mas ao se analisar o contexto das duas nações no mundo hoje, a hegemonia da Coreia do Sul sobre a irmã do norte é evidente. Assim mesmo, em 1997, a Coreia do Sul acusou o golpe da crise financeira desencadeada pelo câmbio excessivamente volátil do dólar, o que resultou num processo de súbito empobrecimento da população. 

Aqueles que ou não dependeram de ajuda do Estado para suprir suas necessidades básicas, ou cometeram suicídio, levados pelo desespero e pela vergonha, bastante característica dos asiáticos diante de um cenário de indignidade, optaram por deixar o país. O destino da família de Kook-hee foi a capital colombiana, e depois que eles se dão conta de que a vida nunca mais será a mesma — pouco depois de desembarcarem no El Dorado, o aeroporto internacional de Bogotá, uma cena em que um motoqueiro os assalta e leva a bolsa com suas parcas economias prima pelo realismo —, o roteiro de Kim e Hwang Seong-gu elabora as situações nas quais Cookie, como passa a ser chamado, entende que, para não ser engolido pelas contingências, precisa integrar-se a seu novo ambiente. Com tudo de tenebroso que isso acarreta.

Cookie torna-se um dos subordinados mais fiéis e destemidos do Sargento Park, um amigo de seu pai que lutara na Guerra do Vietnã (1955-1975) e fizera fortuna importando roupa barata do Mercado da Paz de Seul para a periferia de Bogotá, sem pagar imposto e corrompendo os funcionários da alfândega. “Bogotá: Cidade dos Perdidos” então passa a uma nova cadência quando da gradual ascensão de Cookie e sua amizade com o chefe, e com atuações precisas e afinadas, Song Joong-ki e Kwon Hae-hyo empurram o filme rumo a um thriller mesmerizante, que brinca com as impressões do público sobre esses dois personagens antes incompatíveis, mas que irmanam-se na delinquência. E o desfecho dessa amizade, claro, não deixa nada a dever ao relato de Puzo ou Coppola.

Filme: Bogotá: Cidade dos Perdidos
Diretor: Kim Seong-je
Ano: 2024
Gênero: Policial/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.