A adaptação de uma transcrição de interrogatório para o cinema pode parecer uma escolha improvável, mas quando cada palavra dita carrega um peso que define destinos, a experiência se transforma em um thriller de tensão insuportável. “Reality”, dirigido por Tina Satter, parte desse material bruto para criar um exercício de cinema que se desenrola em tempo real, sem artifícios convencionais. A trama acompanha a analista de inteligência militar Reality Winner no momento em que agentes do FBI batem à sua porta, em uma tarde abafada de 2017, na Geórgia. A abordagem é cordial, as perguntas soam triviais, mas o subtexto é claro: ela é suspeita de vazar um documento sigiloso da Agência de Segurança Nacional (NSA), expondo a interferência russa nas eleições presidenciais dos EUA. O que poderia ser tratado como um escândalo político de grande repercussão se reduz, para a protagonista, a um destino implacável: uma sentença que mudaria sua vida para sempre.
A força do filme está na maneira como transforma um encontro aparentemente burocrático em um jogo psicológico de dominação. Sydney Sweeney assume o papel de Winner com precisão cirúrgica, transitando entre ansiedade e controle calculado, tentando decifrar o que realmente está em jogo. Os agentes Justin C. Garrick (Josh Hamilton) e R. Wallace Taylor (Marchánt Davis) mantêm um tom quase amigável, perguntando sobre os animais de estimação da investigada, as compras do dia, o calor sufocante — elementos que, em um primeiro momento, parecem meros detalhes, mas que logo revelam sua função: criar um ambiente onde a réstia de normalidade aos poucos se dissolve. A trilha sonora de Nathan Micay amplifica essa sensação de sufocamento, oscilando entre minimalismo e notas soturnas, enquanto a fotografia de Paul Yee transforma espaços comuns em cenários de inquietação crescente. Cada silêncio, cada pausa na fala, carrega um subtexto que torna a tensão quase insuportável.
O realismo extremo não é um acaso. Tina Satter optou por um roteiro baseado integralmente na transcrição do interrogatório, sem acréscimos ou reformulações. Esse compromisso com a precisão documental reforça a autenticidade da obra, evidenciando como a linguagem — suas hesitações, repetições e quebras — se transforma em ferramenta de controle. Pequenos elementos de cena adquirem um significado opressor: a porta entreaberta, a ausência de móveis em um cômodo, a expressão dos agentes enquanto ouvem cada resposta. Não há truques narrativos ou elipses dramáticas para intensificar o suspense, apenas a inevitabilidade do que está por vir. Essa abordagem remete ao teatro verbatim, técnica já explorada em filmes como “The Arbor”, de Clio Barnard, e “Nixon’s the One”, de Harry Shearer, que traduzem diálogos reais para o audiovisual com impacto visceral. “Reality” segue essa tradição ao construir um thriller sufocante a partir do registro cru de um acontecimento real.
Além do suspense meticulosamente construído, a obra ressoa como comentário sobre poder e desigualdade no tratamento de vazamentos de informação. Enquanto Reality Winner recebeu a pena mais severa já aplicada a um caso desse tipo — cinco anos e três meses de prisão —, políticos de alto escalão que lidam com documentos sigilosos de forma negligente raramente enfrentam consequências significativas. Esse contraste ganha ainda mais relevância diante das acusações contra Donald Trump pelo armazenamento irregular de materiais confidenciais em sua residência em Mar-a-Lago. O filme não precisa traçar paralelos diretos para que essa realidade se imponha: a diferença de tratamento salta aos olhos e amplia a dimensão política da história.
A performance de Sydney Sweeney é peça-chave para a intensidade do longa. Conhecida por personagens emocionalmente intensas, aqui ela adota uma abordagem mais sutil e contida. O desespero não se manifesta em explosões dramáticas, mas nos pequenos gestos — um olhar fugidio, um suspiro, a forma como segura um objeto entre os dedos enquanto escuta as perguntas. Essa contida vulnerabilidade contribui para tornar sua personagem ainda mais complexa: uma mulher ciente do peso de suas ações, mas também da impotência diante da engrenagem que já começou a girar contra ela.
Se “Reality” tem um mérito indiscutível, é sua capacidade de extrair uma carga dramática monumental de um evento em que, a princípio, pouco acontece. Sem precisar de cenas explosivas ou reviravoltas artificiais, Tina Satter constrói um thriller político implacável, que desmascara a sutileza do poder e a maneira como ele se impõe. A obra não apenas reconstitui um caso real, mas provoca uma reflexão incômoda: no embate entre o indivíduo e o Estado, a verdade pode ser um detalhe irrelevante diante da força da máquina que dita o jogo.
★★★★★★★★★★