Se um filme fica 121 dias no Top 10 da Netflix, ou ele é genial — ou as pessoas não entenderam nada Giles Keyte / Netflix

Se um filme fica 121 dias no Top 10 da Netflix, ou ele é genial — ou as pessoas não entenderam nada

Entre os filmes de guerra, há aqueles que enaltecem feitos individuais, destacando honra, bravura e sacrifício pessoal, e os que enfatizam estratégias coletivas, buscando a exaltação de conquistas militares e o reconhecimento de grandes nações. Independentemente da abordagem, o gênero frequentemente se ancora em fatos históricos, pois batalhas fictícias, salvo em narrativas de ficção científica, tendem a exigir elementos como zumbis, alienígenas ou criaturas parasitárias para se sustentarem. Apesar da minha preferência por tramas realistas, ocasionalmente me surpreendo com enredos mais fantasiosos. Contudo, nada supera o fascínio de assistir a um filme que não apenas revela os bastidores de conflitos reais, mas os apresenta de forma tão inusitada que parecem ter sido inventados por um roteirista de imaginação delirante ou, paradoxalmente, extraídos dos registros imprevisíveis da própria história. Esse é exatamente o caso de “O Soldado que Não Existiu”.

Lançado no Reino Unido em 15 de abril de 2022, o longa de John Madden resgata um plano de contraespionagem fundamental para a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, mas até então pouco conhecido. O título, de inspiração pouco feliz, talvez seja sua única falha; no mais, trata-se de uma produção requintada, sustentada por um elenco britânico de alto nível e por uma narrativa que equilibra precisão histórica e melodrama com rigor artesanal. Como uma receita complexa que exige mão treinada, o filme dosa elementos emocionais sem desviar do rigor dos fatos.

A trama se permite liberdades criativas, como a inclusão de Ian Fleming, ainda um burocrata anônimo, assistente do almirante John Godfrey, de Jason Isaacs, chefe da Inteligência Naval Britânica e inspiração para M, o comandante do MI5 na franquia James Bond. Interpretado por Johnny Flynn, Fleming assume o papel de narrador, com cenas que o mostram datilografando seu relato, um clichê bem utilizado aqui. É como se o espectador ocupasse um lugar privilegiado na plateia de um espetáculo que revela um dos episódios mais audaciosos da guerra.

Essa linha tênue entre realidade e invenção se manifesta no próprio personagem de Flynn, cuja presença confere um toque ficcional à trama. Madden sugere que o escritor teria concebido o plano levado a cabo em 1943 por Ewen Montagu, interpretado com habitual maestria por Colin Firth, e Charles Cholmondeley, vivido por Matthew Macfadyen. A ameaça nazista exigia uma resposta urgente, e o primeiro-ministro Winston Churchill, em atuação sóbria de Simon Russell Beale, determinou que a Sicília seria o ponto-chave do contra-ataque. Para despistar os alemães, foi criada a Operação Mincemeat (“Carne Moída”), que envolvia lançar ao mar um cadáver portando documentos falsos, indicando um ataque na Grécia. A trama, absurda a ponto de parecer ficção, já havia sido tema de um filme de 1956, “O Homem Que Nunca Existiu”, baseado no livro de Montagu.

O roteiro de Michelle Ashford, adaptado da obra do historiador Ben Macintyre, expõe as tensões entre os responsáveis pela missão e os bastidores das decisões do alto escalão britânico. Montagu é retratado como um homem em busca de propósito, após uma carreira consolidada no Tribunal de Justiça de Londres. Sua despedida da esposa, Iris, interpretada por Hattie Morahan, e dos filhos enviados aos Estados Unidos, marca um momento de ruptura pessoal, ampliado por sua relação com Jean Leslie, papel de Kelly Macdonald, uma operadora eficiente do MI5. Entre dilemas familiares e a pressão do irmão Ivor, vivido por Mark Gatiss, Montagu e Cholmondeley refinam um plano que eles mesmos duvidavam que funcionaria. Churchill, porém, apostou na ideia, e um suicida por envenenamento foi transformado em William Martin, um suposto oficial abatido no Mediterrâneo. Quando Salvador Gomez-Beere, legista íntegro interpretado por Will Keen, ameaça comprometer a missão, um novo desdobramento garante seu êxito, conduzindo ao desfecho que a história registrou.

O elenco brilha em atuações que conferem profundidade ao enredo, com destaque para Penelope Wilton como Hester Leggett, uma veterana do MI5 que oferece uma perspectiva mais acessível sobre a complexidade da missão. O filme também revisita dilemas éticos, como o envio de milhares de soldados à Sicília, uma aposta de alto risco para os Aliados. Nos momentos finais, o capitão David Ainsworth, interpretado por Nicholas Rowe, surge como contraponto moral, refutando a máxima maquiavélica de que os fins justificam os meios. Entretanto, diante de uma narrativa essencialmente pragmática, sua visão se dilui em meio às exigências implacáveis da guerra.

Filme: O Soldado que Não Existiu
Diretor: John Madden
Ano: 2022
Gênero: Drama/Guerra
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★