Ancestralidade e pertencimento: o belíssimo drama arrepiante, produzido por Denzel Washington, que está na Netflix Brian Douglas / Netflix

Ancestralidade e pertencimento: o belíssimo drama arrepiante, produzido por Denzel Washington, que está na Netflix

Produzido por Denzel Washington e dirigido por seu filho, Malcolm Washington, “Piano de Família” é um drama intenso e carregado de simbolismos. Inspirado na peça “A Lição de Piano”, de August Wilson — o mesmo autor de “Fences: Um Limite Entre Nós” e “A Voz Suprema do Blues” —, o longa mergulha em temas como ancestralidade, identidade, memória e o peso das escolhas.

A trama se desenrola em torno de um piano que transcende seu papel de mero objeto e se torna o epicentro de um embate entre os irmãos Berniece (Charity Jordan) e Boy Willie (John David Washington). Para Berniece, o instrumento representa a conexão com os antepassados e carrega uma energia espiritual que não pode ser dissipada. Já Boy Willie vê nele a oportunidade de conquistar autonomia financeira ao vendê-lo e adquirir terras que outrora pertenceram ao antigo senhor de escravos de sua família. Enquanto Berniece se agarra à herança como um relicário da história familiar, Boy Willie enxerga a transação como uma forma de redenção e revanche contra o passado opressor.

A tensão entre os irmãos se intensifica, culminando em confrontos acalorados. Doaker (Samuel L. Jackson), o tio da dupla, decide intervir, trazendo à tona a origem do piano e sua trajetória. Ele narra como o instrumento chegou à família: pertencente a Joel Nolander, o piano foi adquirido pelo senhor de terras Robert Sutter como presente para sua esposa, Ophelia. Incapaz de arcar com o custo da compra, Sutter ofereceu dois escravizados em troca: uma mulher jovem, Mama Berniece, e seu filho de nove anos, pai de Doaker. A separação forçada provocou arrependimentos tardios e, para amenizar a dor da esposa, Sutter encomendou ao talentoso carpinteiro Papa Willie Boy a entalhação das figuras de sua mulher e filho no piano. Contudo, o artesão foi além, transformando a superfície do instrumento em um mural da saga de sua linhagem, esculpindo rostos e momentos de sua história.

Anos depois, Boy Charles, pai de Berniece e Boy Willie, impulsionado pela ânsia de resgatar a dignidade familiar, roubou o piano. Sua tentativa de fuga, no entanto, teve um desfecho trágico: ele foi assassinado dentro de um vagão de trem. O piano, jamais recuperado por Sutter, tornou-se legado dos irmãos, carregando não apenas os entalhes, mas também o peso de um passado doloroso e inescapável.

Símbolo de resistência e pertencimento, o piano permanece fechado, envolto em uma aura de misticismo e temor. Berniece se recusa a tocar suas teclas, pois acredita que ele desperta espíritos ancestrais e ressurge memórias de sofrimento e escravidão. No entanto, os acontecimentos da trama a levam a um momento de epifania: pressionada pelas circunstâncias, ela finalmente abre o piano e o toca. A cena é carregada de emoção e reverência, evocando os espíritos dos antepassados para protegê-la e selando sua aceitação do passado como parte indissociável de sua identidade.

Sob a direção sensível e refinada de Malcolm Washington, “Piano de Família” se estabelece como uma obra de profundidade emocional e impacto visual. O filme não apenas honra a peça de August Wilson, mas também amplifica sua força, conduzindo o espectador por um enredo repleto de simbolismo, misticismo e dilemas morais. O elenco entrega performances intensas e imersivas, elevando ainda mais a carga dramática da narrativa.

Mais do que um relato sobre uma disputa familiar, “Piano de Família” se apresenta como uma reflexão sobre herança, memória e a importância de reconhecer as dores do passado para construir o futuro. Com uma execução impecável e uma mensagem atemporal, esta é uma obra que ressoa profundamente, deixando uma marca indelével em quem a assiste.

Filme: Piano de Família
Diretor: Malcolm Washington
Ano: 2024
Gênero: Drama/Mistério
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★