O filme “Cidade de Gelo” (2020), dirigido pelo russo-americano Michael Lockshin, constrói uma narrativa embebida em contrastes, ambientada em um cenário visualmente deslumbrante, onde o amor floresce com a intensidade de uma fábula. A história se passa na transição do século 19 para o 20, um período turbulento na Rússia, mas que aqui serve mais como pano de fundo do que como eixo central do roteiro escrito por Roman Kantor. O fervilhar da sociedade russa é captado de maneira sutil, refletindo-se nas expressões e nos destinos de seus dois protagonistas, um casal que apenas na reta final da trama assume plenamente seu papel.
Com um tom deliberadamente melodramático, a obra evoca o espírito das grandes novelas russas, como as de Dostoiévski e Tolstói, enquanto sua essência lembra um “Romeu e Julieta” moldado pelo rigor do inverno. Lockshin aposta no conflito de classes como motor narrativo, mas evita transformar o filme em um panfleto ideológico.
A trama acompanha Matvey (Fedor Fedotov), jovem de origem humilde que, no limiar entre adolescência e maturidade, se vê atraído pela liberdade e pelo perigo, culminando em sua entrada para uma gangue de batedores de carteira liderada por Alexey (Yuriy Borisov). Os pequenos crimes do grupo semeiam o pavor entre os moradores de São Petersburgo, e Matvey, ansioso por provar seu valor, aceita a arriscada missão de invadir o quarto de Alice (Sonya Priss) em uma noite pouco propícia para ações criminosas.
Alice, filha do baronete Nikolai Nikolaievitch (Aleksei Guskov), uma figura de peso no comissariado de polícia, surpreende o intruso e, ao invés de denunciá-lo, sente-se intrigada por sua presença, a ponto de rejeitar as investidas do disciplinado oficial Arkadi (Kirill Zaytsev). A relação que se desenvolve entre os protagonistas não se restringe ao romance: ambos se tornam catalisadores das transformações um do outro. Alice, movida por um idealismo juvenil, vê na proximidade com Matvey um impulso para desafiar as barreiras impostas à sua ambição de ingressar na universidade como estudante de química. Já Matvey, confrontado com a realidade de suas escolhas, percebe que sua vida junto a Alexey e os outros marginais o condena a um destino estéril.
O clímax, orquestrado a bordo de um vagão de trem, segue uma estrutura clássica, mas preserva a essência encantatória da história, evocando o lirismo das narrativas atemporais. Lockshin molda sua fábula com um olhar nostálgico, remetendo às simplicidades da ficção romântica e dos contos de fada, onde a realidade se curva ao sonho e o impossível encontra abrigo na tela. “Cidade de Gelo”, assim, não é apenas um relato sobre diferenças sociais ou paixões proibidas, mas um convite à imersão em um tempo e um espaço onde o amor, por um breve instante, desafia o destino e resiste ao frio implacável da vida.
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