O filme delirante da Netflix que utiliza uma teoria de Albert Camus para te enlouquecer Katrina Marcinowski / Netflix

O filme delirante da Netflix que utiliza uma teoria de Albert Camus para te enlouquecer

A existência exige mais do que bravura. Ao longo do caminho, surgem momentos que fazem vacilar até mesmo os mais convictos sobre a beleza da vida. Quando o peso dos infortúnios se impõe, sonhos que pareciam palpáveis tornam-se apenas sombras distantes. A derrocada das ilusões, a necessidade de encarar verdades incômodas e a percepção de que se merece mais do que os parcos favores do destino são dilemas comuns a qualquer trajetória. Quem se encontra no domínio pleno da razão pode, diante dessas adversidades, arquitetar formas de superação e atravessar a tormenta com mais destreza do que imaginava. O verdadeiro desafio está em manter a clareza do olhar — ou resgatá-la — para recolocar tudo em sua devida ordem.

Em “Entre Realidades” (2020), Jeff Baena utiliza a jornada da protagonista para abordar o tormento inerente à vida, demonstrando que, apesar das angústias, há algo de peculiarmente fascinante em existir. Alison Brie, que assina o roteiro ao lado do diretor, dá vida a uma mulher cuja percepção da realidade se desintegra progressivamente. O transtorno mental não é introduzido de imediato como um fator de conflito, mas sim como uma condição que leva a situações de um humor pueril, quase ingênuo.

O roteiro ressalta um histórico familiar de distúrbios psiquiátricos, possivelmente episódios esquizofrênicos, vividos por sua avó — a única referência afetiva concreta em seu passado. Entre memórias que oscilam entre o concreto e o delírio, a protagonista oscila entre a aceitação da doença e a relutância em admitir a gravidade de sua condição, enquanto os sintomas se avolumam e tornam sua autonomia cada vez mais frágil. Baena conduz essa narrativa com cautela, até que a fronteira entre sanidade e loucura se dissipe completamente.

Alison Brie confere à sua personagem um ar de mediocridade cotidiana com uma precisão assombrosa. Pouco a pouco, o espectador mergulha na melancolia que a consome. Sarah tenta enxergar alguma realização em sua ocupação, mas no fundo sabe que seu trabalho serve apenas para garantir sua subsistência e manter o aluguel do apartamento que divide com Nikki (Debby Ryan), relação amenizada por uma amizade genuína, ainda que superficial. Seu único laço de cumplicidade mais sincero é com Joan, colega interpretada por Molly Shannon, que, apesar de competente, tem sua presença pouco aproveitada.

Quando se revela que Sarah compartilha traços físicos com a avó falecida, o filme encontra uma brecha para um alívio cômico — um artifício explorado com habilidade pela atriz principal. Esse detalhe é o que conduz Darren (John Paul Reynolds), seu interesse amoroso, a acompanhá-la até o cemitério onde sua avó foi enterrada. No entanto, sua busca por afeto acaba sendo apenas mais uma promessa ilusória, e a deterioração definitiva de sua sanidade se torna inevitável.

Com uma abordagem sem concessões, “Entre Realidades” exige um olhar atento para sua construção minuciosa do colapso mental. O desfecho, momento em que o título original “Horse Girl” se justifica, é uma síntese fiel do percurso de Sarah, uma mulher que se perde inteiramente em sua própria percepção distorcida do mundo.

Filme: Entre Realidades
Diretor: Jeff Baena
Ano: 2020
Gênero: Drama
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★