Ótimos motivos para assistir e se divertir com Falando a Real, na Apple TV

Ótimos motivos para assistir e se divertir com Falando a Real, na Apple TV

Por mais que se garimpe, chega uma fase da vida de um cinéfilo em que é tão difícil encontrar filmes, documentários e séries legais nos canais de streaming que a gente acaba se sentindo na obrigação de compartilhar os nossos “achados”. Tanto assim que vigora uma rede informal de colaboração entre aficionados, na qual uma pessoa municia a outra com dicas do que vale a pena ser visto do sofá de casa, atrás da montanha de pipocas.

Quem me indicou “Falando a Real” — “Shrinking”, uma série da Apple TV de 2023 — foi a minha filha Júlia. Baseada em parâmetros bem particulares, ela me garantiu que eu adoraria. E não é que gostei mesmo? Não é usual que pessoas de diferentes gerações compartilhem preferências. Nada mal. É o bendito choque entre gerações a arrancar a minha bunda da zona de conforto. Missão dada, missão cumprida.

Apesar de certa desconfiança, comecei a assistir ao seriado e fui arrebatado pela atmosfera divertida e relaxante desde o primeiro capítulo. Basicamente, o roteiro se desenvolve ao redor de Jimmy (o ótimo ator Jason Segel), um terapeuta em luto pela trágica morte da esposa, pai de Alice (a atriz Lukita Maxwell), filha única, adolescente, igualmente atarantada com a ausência forçosa e definitiva da mãe. Jimmy trabalha em uma clínica de psicoterapia juntamente com dois colegas: Gaby (a bela, radiante e hilária Jessica Williams), uma mulher preta de meia-idade, e Paul (o icônico ator Harrison Ford), um homem branco, idoso, que se descobre acometido pela doença de Parkinson em estágio inicial.

Apesar da gravidade e da relevância dos conflitos, trata-se de uma comédia. Favor não confundir comédia com besteirol americano. “Falando a Real” é uma série de TV que aborda, de forma inteligente e divertida, um assunto tremendamente sério: a saúde mental das pessoas.

O aspecto mais inusitado do seriado é a constatação de que os psicoterapeutas são igualmente acometidos pelos grilos existenciais mais corriqueiros, inclusive aqueles vivenciados por seus pacientes. Muitas vezes, esquecemo-nos de que os profissionais que tratam transtornos psíquicos de terceiros não são criaturas imunes a sentimentos ordinários como raiva, rancor, desencanto e depressão, por exemplo.

Ao longo das duas temporadas da série, perguntamo-nos: seria mesmo possível que profissionais tão “complicados” conseguissem lidar com pacientes mentalmente adoecidos? Parodiando uma canção da banda Raimundos, a resposta é risível: somos todos complicados e perfeitinhos. O diferencial entre pacientes e terapeutas é que esses últimos estudaram durante anos para se capacitar para o espinhoso ofício de cuidar da saúde mental das pessoas, a fim de mitigar o sofrimento e outros efeitos deletérios.

Outra particularidade: tomados pela descontração constante, as personagens usam e abusam das gírias e das piadas de cunho sexual. Eu gosto. Sou adepto dos palavrões e do escracho típicos da linguagem coloquial.

Suponho que os psicoterapeutas da vida real vão se divertir com “Falando a Real”, pois o seriado faz piada deles, dos pacientes, de todo mundo, o tempo inteiro, numa forma hilária de relevar as neuroses e de não levar os perrengues da vida tão a sério. De certa forma, é mesmo um alívio ter a certeza de que faltam parafusos na cabeça da humanidade. Ninguém escapa, nem mesmo o mais experimentado e respeitado psicoterapeuta.

Outro fator preponderante na trama é o exercício recorrente da autocrítica, do feedback e do perdão, atributos que têm faltado bastante nesses tempos de intolerância requentada e de apologia ao ódio. Em incontáveis momentos, as personagens se desentendem, se maltratam, mas também se perdoam e se reconciliam, numa busca frenética pelo bem viver, reconhecendo deslizes e se retratando por tê-los cometido. Se isso não é prova de evolução pessoal e de amor recíproco, não saberia como nominar.

Fato é que “Falando a Real” vale muito a pena ser vista, pois diverte e educa ao explicitar o cotidiano conflituoso de personagens que nos parecem tão familiares. De fato, somos nós na tela da TV, só que de uma forma suavizada e um tanto caricata. O elenco é carismático, competente, de primeira grandeza, capitaneado pelo veterano Harrison Ford, cujo personagem, Paul, é o meu predileto — provavelmente por causa da fobia de multidões e do temperamento ranzinza.

Por fim, ao recomendar fortemente a série televisiva “Falando a Real”, produção da Apple TV, aos leitores, confirmo o aforismo de que, brincando, tudo pode ser dito, inclusive a verdade. Não sei se a verdade vai nos libertar, mas, pelo menos, vai nos divertir. Somos odiosos, mas também risíveis. Ninguém escapa imune às mazelas de uma existência na qual todos acabamos afetados até mesmo por aqueles que nos amam, desde a infância até a senectude.

Antes que melhoremos como pessoas, necessário se faz admitir a nossa fragilidade, as nossas incoerências, a nossa “loucura”, a fim de buscarmos a melhor forma de lidar com esse pacote de sentimentos tão antagônicos, de preferência com o apoio importante de profissionais da saúde mental que foram cientificamente treinados para ouvir o que as pessoas têm a dizer, em particular os capítulos censurados de sua biografia impublicável.

A vida é mais drama do que comédia. Permita-se ao deboche. Ria de si mesmo e viva melhor.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a “Revista Bula” há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente “Bipolar”, uma antologia de contos e crônicas.