Os Elixires do Diabo, de E. T. A. Hoffmann

Os Elixires do Diabo, de E. T. A. Hoffmann

E. T. A. Hoffmann se emparelhou a questões delicadas e margeou um abismo com sua filosofia indiscreta. Falar sobre um monge que se embriaga com um suposto elixir que pertence ao próprio diabo é um preâmbulo maravilhoso para discutir temas bastante relevantes de seu tempo: a sociedade burguesa, os títulos de nobreza, o poder do papa, os domínios claustrofóbicos e limitantes dos mosteiros, a arte, a música e os relacionamentos. Tudo isso pode ser encontrado nas linhas fantásticas de “Os Elixires do Diabo”.

Franziskus (Franz) é um menino virtuoso, cheio de entendimento espiritual, criado por uma mãe viúva e que cai nas graças de uma abadessa generosa, que o acolhe como sua madrinha. Tem visões de um menino Cristo que o ensina as lições divinas, como no catecismo, e é orientado por um ancião austero que prevê seu futuro monástico e santo. Ao tornar-se monge, Franz adota o nome de Medardo, motivado por uma visão profética de sua mãe no dia que homenageia o santo homônimo.

Os Elixires do Diabo, de E. T. A. Hoffmann
Os Elixires do Diabo, de E. T. A. Hoffmann (Estação Liberdade, 368 páginas)

Hoffmann quer discutir a tênue linha entre a razão e a crença. Suas personagens vivem em um mundo onde os comportamentos que são caracterizados como desvios comportamentais, determinados pela ordem religiosa vigente — o cristianismo, especialmente a Igreja Católica —, são atribuídos às tentações do diabo, um ente metafísico aparentemente dotado de aspectos e ações humanas, mas que não tem uma forma muito específica ou evidente. Medardo está à margem. Seu sentimento é para com o mundo e suas atrações, apesar de estar profundamente inclinado a ser um santo nos critérios da religião que escolheu seguir. Há um discurso muito bem elaborado e, ao mesmo tempo, oculto, e que demora a se revelar, de que existe na herança de sangue (hoje chamaríamos de genética) de Medardo uma tendência natural ao crime, ao equívoco, a uma vida de constantes erros e quedas. Ele é o monge que se distancia da ordem justamente porque não comporta em si o seu desejo de absorver-se nas mais tentadoras sensações do corpo. Um direito seu, acredita, uma vez que é humano. À beira do ceticismo, Medardo surge como um devoto expoente do pensamento hoffmanniano, que intenciona estabelecer entendimentos científicos para eventos que, em sua época, eram atribuídos ao sobrenatural. Mas não deixa escapar que tem um pé no mundo espiritual para que a ação tenha sua dose exata de tensão e drama.

O livro é uma peça de investigação e suspense. Para equilibrar o gênio ansioso e intenso de Medardo, dado às aventuras nas quais não deveria se envolver, por se tratar de questões com afinidades com o mal, existe seu antagônico, o Prior Leonardus, que representa a identidade religiosa da época com toda sua potência. Ainda cedo, na iniciação de Medardo, ele o faz refletir: “— Meu filho, o ceticismo é a pior superstição!”.

Dentre todos os temas abordados por Hoffmann, dois são de particular importância, isso para ficarmos apenas em alguma fração da obra, que explora uma vasta quantidade de temas relevantes. Um deles é o desdém do autor pelos títulos e sua tese de uma ascensão humana pelo conhecimento científico e pela arte. Hoffmann usa uma personagem, um médico da nobreza, para dizer que, no futuro, os humanos respeitados serão os eruditos, os conhecedores de ciência, não aqueles que carregam um sobrenome, pois isso não teria a menor importância em um mundo cujo desenvolvimento e progresso dependem mais de cérebros privilegiados do que de patentes. Chega a dizer que “Tendo em vista que nossa época substituiu os valores físicos pelos psíquicos, a aristocracia do sangue azul e da força pela aristocracia do intelecto e do espírito, talvez seja mais meritório descender de Leibniz que de Amadis de Gaula ou de qualquer cavaleiro da Távola Redonda, se alguém quiser provar a nobreza hereditária”. Outro é a projeção de que a crença no diabo pode ser, muito propriamente, comparada à loucura. Os aspectos psicóticos e obsessivos de Medardo, que facilmente seriam atribuídos à possessão pelos religiosos da época, são tranquilamente, hoje em dia, contemplados por especialistas como perturbações psicológicas amplamente estudadas.

Hoffmann cria um romance complexo, com reviravoltas espetaculares, sobretudo no que diz respeito ao caminho em que conduz o leitor no sentido de deixá-lo levar-se pelo místico, pelo espiritual, quando, em diversos momentos, tudo pode ser muito bem interpretado usando a lógica e os fatos. Nesse sentido, Os Elixires do Diabo é uma espécie de suspense “policial” clássico.

Victor Hugo, em seu “Prefácio de Cromwell” (“Do Grotesco e do Sublime”), estabelece a sua Teoria das Três Idades: tempos primitivos, tempos antigos e tempos modernos, o que parece explicar a lógica filosófica de Hoffmann. Franz, o menino puro, vê poesia em tudo quando é criança, em seu tempo primitivo: “Quando o homem desperta num mundo que acaba de nascer, a poesia desperta com ele. Em presença das maravilhas que o ofuscam e o embriagam, sua primeira palavra não é senão um hino. Ele toca ainda de tão perto a Deus que todas as suas meditações são êxtases, todos os seus sonhos, visões”. Ao crescer, torna-se adulto, é o monge formado, acredita na sua capacidade de transformação, de realização de coisas formidáveis, e aí “a poesia é religião e a religião é lei”. É o tempo dos heróis, das epopeias. Os discursos do padre lotam a igreja e reverberam mundo afora. Finalmente, Medardo torna-se um ser complexo, desceu até um precipício de experiências e tornou-se um ser cheio de culpas, de erros. Mas só aquele que desceu ao mais baixo inferno poderá subir ao mais alto céu, diz a profecia. Assim, faz jus à terceira idade de Victor Hugo: ela “de início, como primeiras verdades, ensina ao homem que ele tem duas vidas que deve viver, uma passageira, a outra imortal; uma da terra, a outra do céu. Mostra-lhe que ele é duplo como seu destino, que há nele um animal e uma inteligência, uma alma e um corpo; em uma palavra, que ele é o ponto de intersecção, o anel comum das duas cadeias de seres que abraçam a criação, da série dos seres materiais e da série dos seres incorpóreos, a primeira, partindo da pedra para chegar ao homem, a segunda, partindo do homem para acabar em Deus”.

Assim, deve haver um retorno de Medardo para a sua primeira busca: a santidade. Mas agora, acrescida de sua experiência, está a verdade. Pelo menos, aquela que Hoffmann julga interpretar.

Medardo acredita, em algum momento, ser Santo Antônio. Segundo a Legenda Áurea, o nome Antônio vem de ana, “embaixo”, e tenens, “aquele que abraça as coisas do alto e despreza as da Terra”, o que reforça o caráter divergente dos extremos muito acentuado em Medardo. Através do monge pecador e de sua redenção, Hoffmann profetiza uma revolução do espírito por meio da ciência, onde eruditos conhecedores da natureza estarão acima de quaisquer outros humanos. Mas a força do mito cristão e da superstição, em sua época, tem o peso de uma âncora. Ainda assim, ele avança e cria uma obra fundamental e canônica, um livro para ler muitas vezes e para criar muitos outros ensaios.


Solemar Oliveira

Doutor em Física, professor universitário e pesquisador com trabalhos publicados em periódicos acadêmicos nacionais e internacionais. Também atua como prosador, poeta, crítico e ensaísta. Autor dos romances “Desconstruindo Sofia” e “A Confraria dos Homens Invisíveis”, além do livro de contos “A Breve Segunda Vida de uma Ideia”, destacado entre os melhores de 2022. Seu livro “As Casas do Sul e do Norte”, publicado pela editora da Revista Bula, recebeu o prêmio Hugo de Carvalho Ramos, uma das mais tradicionais láureas literárias do Brasil.