A transcrição de um interrogatório pode parecer, à primeira vista, matéria-prima insólita para um filme. Mas quando esse registro captura um momento de tensão silenciosa, um jogo psicológico entre autoridades e uma mulher cujo destino se decide em tempo real, o que se tem é um thriller de contenção angustiante. “Reality”, dirigido por Tina Satter, parte desse material cru para construir uma experiência cinematográfica singular, que se desdobra inteiramente a partir das palavras ditas em um dia de verão em 2017, na entrada de uma casa em Augusta, Geórgia. A protagonista, Reality Winner, cuja identidade parece irônica diante dos eventos que se seguem, foi interrogada pelo FBI por suspeita de vazar um documento sigiloso da Agência de Segurança Nacional (NSA). Esse vazamento expunha tentativas de interferência russa na eleição presidencial de 2016 — um escândalo que reverberaria no cenário político americano, mas que, para sua denunciante, resultaria apenas em um destino implacável: a prisão.
A força do filme está na maneira como transforma uma situação ordinária — um interrogatório conduzido com cordialidade forçada — em um estudo de poder, medo e linguagem. Sydney Sweeney, em um desempenho meticuloso e profundamente observador, interpreta Winner como alguém que transita entre o nervosismo e a racionalidade, tentando equilibrar as respostas que oferece aos agentes Justin C. Garrick (Josh Hamilton) e R. Wallace Taylor (Marchánt Davis). Os dois se apresentam com um tom amistoso, interessados em trivialidades — os animais de estimação de Winner, suas compras ainda na sacola, o estado do tempo naquele dia abafado —, mas a atmosfera do filme é de um desconforto crescente, como se a qualquer momento a fachada de civilidade pudesse se romper. A tensão é acentuada pela trilha sonora inquietante de Nathan Micay, que oscila entre o minimalismo eletrônico e tons ameaçadores, antecipando o desenrolar inevitável dos eventos.
O realismo extremo da obra não é um acidente. Tina Satter tomou a decisão radical de basear seu roteiro exclusivamente na transcrição do interrogatório, sem qualquer reescrita ou reestruturação dramatúrgica. Essa escolha reforça a autenticidade do filme, ao mesmo tempo que destaca como a linguagem — pausas, hesitações, omissões — se torna uma ferramenta de dominação sutil. A direção de fotografia de Paul Yee traduz essa opressão através de uma iluminação brutalmente realista, que transforma espaços comuns em cenários de inquietação psicológica. Pequenos detalhes ganham uma carga simbólica poderosa: a casa quase vazia, a porta aberta, a ausência de móveis em um dos cômodos — todos elementos que, inicialmente, parecem banais, mas que vão se tornando imagens de um destino selado.
A influência do teatro verbatim, em que diálogos são extraídos diretamente de registros reais, já se mostrou eficaz no cinema contemporâneo. O impacto dessa técnica pode ser visto em “The Arbor”, de Clio Barnard, onde atores dublam entrevistas gravadas para reconstruir a história da dramaturga Andrea Dunbar. O mesmo recurso é explorado em “Nixon’s the One”, de Harry Shearer, que transforma as gravações secretas de Richard Nixon em uma comédia de humor ácido. No caso de “Reality”, essa abordagem resgata a experiência vivida por Winner e a traduz para um thriller sufocante que se desenrola em tempo real, elevando o suspense a partir de uma encenação mínima, mas poderosa.
Além da tensão narrativa, “Reality” ressoa em um contexto político mais amplo. O caso de Winner se insere em um histórico de denunciantes que foram severamente punidos por expor verdades incômodas. Enquanto ela recebeu uma pena de cinco anos e três meses, a mais dura já aplicada a um vazamento desse tipo, políticos de alto escalão que lidaram com documentos sigilosos de forma negligente dificilmente enfrentam consequências proporcionais. O contraste se torna ainda mais gritante à luz das acusações contra Donald Trump por armazenamento irregular de documentos confidenciais em sua residência em Mar-a-Lago. O que, para um ex-presidente, pode ser tratado como um erro administrativo, para uma analista de inteligência militar resultou em uma sentença esmagadora.
A performance de Sydney Sweeney é central para o impacto do filme. Conhecida por papéis em que interpreta jovens emocionalmente intensas e visivelmente instáveis, aqui ela trabalha com uma paleta mais sutil: sua Reality não explode em desespero, mas demonstra sua angústia nos detalhes — no modo como desvia o olhar, na rigidez do corpo, nas pequenas hesitações ao responder perguntas que, à primeira vista, parecem inofensivas. Esse jogo de resistência silenciosa e adaptação estratégica às nuances do interrogatório transforma a personagem em uma figura intrigante e multifacetada, alguém que compreende o jogo que está sendo jogado, mas não tem como vencê-lo.
Se há um mérito inegável em “Reality”, é sua habilidade de traduzir um evento aparentemente banal em uma experiência cinematográfica poderosa. Com uma abordagem que evita os artifícios convencionais do gênero, Satter constrói um filme que não apenas documenta um momento específico da história recente, mas também lança uma reflexão mais ampla sobre a maneira como a verdade é tratada pelo poder. O resultado é um thriller político que dispensa explosões ou reviravoltas mirabolantes, mas que deixa uma impressão duradoura, uma lembrança desconfortável de que a realidade, muitas vezes, é mais implacável do que qualquer ficção.
★★★★★★★★★★