Ao chegar aos cinemas, “Coringa” gerou uma onda de polarização, atraindo elogios pela ousadia estética e, simultaneamente, críticas pela abordagem controversa sobre saúde mental e masculinidade tóxica. Em “Coringa: Delírio a Dois”, Todd Phillips desafia novamente as expectativas ao abandonar o tom sombrio do primeiro filme e mergulhar em um território inesperado: um musical psicodélico e fragmentado, onde a narrativa é distorcida pelas alucinações de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) e Lee Quinzel (Lady Gaga), em meio a uma trama que mistura delírios compartilhados e drama de tribunal.
Dessa vez, a violência não é apresentada como uma reação visceral, mas como consequência de um homem que perdeu o controle de sua própria narrativa. Fleck, encarcerado no Asilo Arkham, não é mais um anti-herói a ser admirado, mas um sujeito que se debate com sua própria desconstrução, agora consumido pela idealização de sua persona. O conceito de “folie à deux”, a psicose compartilhada, é central para a dinâmica entre Fleck e Lee, mas a personagem de Gaga carece de profundidade, limitando a trama a um espelho da obsessão de Fleck. O maior acerto do filme está em sua estética visual; a fotografia de Lawrence Sher, impecável, e o design de produção de Mark Friedberg criam um universo denso e visualmente fascinante, onde a linha entre loucura e realidade é constantemente borrada. A iluminação, especialmente, é usada de forma magistral, com contrastes intensos entre a frieza do ambiente do Arkham e os momentos oníricos que representam os delírios de Fleck, oferecendo uma experiência sensorial única ao espectador.
No entanto, o filme carece de uma execução musical que corresponda à grandiosidade do conceito. Os números musicais, que deveriam evocar a mente fragmentada de Fleck, muitas vezes não se conectam totalmente com o tom da história, variando entre referências de cinema clássico, como os espetáculos em preto e branco dos anos 1940, e shows bregas de Las Vegas. A escolha de Phoenix para cantar durante as cenas adiciona uma camada de estranhamento à trama, pois sua voz tensa e forçada combina mais com sua caracterização de fleumático do que com uma performance fluida e emotiva. Em compensação, Gaga entrega uma performance cativante e visceral, mas seu papel como Lee, em grande parte moldado pela obsessão de Fleck, não alcança o potencial que poderia ter se ela fosse mais desenvolvida. Em muitos momentos, Lee parece mais um reflexo do protagonista do que uma personagem autônoma.
“Coringa: Delírio a Dois” se destaca por sua capacidade de ressignificar o primeiro filme. Ao retirar de Fleck o controle sobre sua narrativa e colocá-lo como objeto de escrutínio, Phillips oferece uma reinterpretação da violência e da exaltação da masculinidade tóxica, distorcendo o que antes poderia ser lido como uma glorificação do ressentimento masculino. Contudo, o roteiro, por vezes, peca pela excessiva didática, o que enfraquece a sutileza da mensagem que o filme tenta transmitir. A abordagem, embora inovadora e ousada, acaba por cair em um certo excesso de explicação, comprometendo a experiência de forma geral.
“Coringa: Delírio a Dois” é um filme de paradoxos. Ao mesmo tempo em que se distancia da estrutura do primeiro, ele também depende de sua existência para criar impacto. As sequências musicais são audaciosas e refletem a mente perturbada de Fleck, mas nem sempre justificam sua presença na narrativa. E, embora o filme tente se desviar da adoração de Fleck, ele se delicia ao colocá-lo novamente como centro das atenções. Com tudo isso, o que fica é um longa que, embora imperfeito, provoca uma reflexão profunda sobre as consequências de uma sociedade que transforma delírios em símbolos de revolução, ao mesmo tempo que lida com a fragilidade e a deterioração de um personagem que nunca deixou de ser humano, por mais distorcido que tenha se tornado.
★★★★★★★★★★