Quando “Coringa” chegou aos cinemas em 2019, sua recepção foi marcada por uma polarização intensa. A narrativa de um homem marginalizado que encontra na violência uma forma de expressão dividiu críticos e público, com muitos exaltando sua ousadia estética e outros questionando sua abordagem da saúde mental e sua suposta glorificação da masculinidade tóxica. Agora, com “Coringa: Delírio a Dois”, Todd Phillips retorna a esse universo de forma inesperada, desafiando expectativas ao abandonar a estrutura sombria e realista do primeiro filme em favor de um musical psicodélico e fragmentado, que mistura drama de tribunal, delírios compartilhados e uma relação conturbada entre Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) e Lee Quinzel (Lady Gaga).
Se no primeiro “Coringa” a violência emergia como uma resposta visceral ao abandono social, em “Coringa: Delírio a Dois”, Phillips e o roteirista Scott Silver parecem dispostos a desconstruir o que antes poderia ser interpretado como uma exaltação do privilégio masculino branco. Fleck, agora encarcerado no Asilo Arkham, não é mais visto como um anti-herói revolucionário, mas como um homem tragado por suas próprias alucinações e pela idealização de sua imagem. O “deux” do título faz referência tanto ao relacionamento entre Fleck e Lee quanto à dualidade crescente entre Arthur e sua persona do Coringa. Seu passado de violência é revisitado através de uma narrativa que, ao contrário do primeiro filme, não pede simpatia pelo protagonista, mas o expõe às consequências de suas ações.
Uma das decisões mais ousadas de Phillips é transformar esse thriller psicológico em um musical. Em teoria, essa abordagem poderia funcionar brilhantemente como um reflexo da mente fragmentada de Fleck, mas, na prática, a execução nem sempre atinge seu potencial. Os números musicais evocam desde os espetáculos em preto e branco dos anos 1940 até shows bregas de Las Vegas, e as referências a “The Band Wagon” e “Os Guarda-Chuvas do Amor” acabam por destacar o contraste entre o conceito e sua execução. A escolha de Phoenix para interpretar canções inteiras adiciona uma camada de estranhamento à trama, pois ele canta da mesma forma que ri: de maneira tensa, forçada e dolorosa. Em compensação, Gaga entrega uma performance cativante e visceral, mesmo com uma personagem que carece de desenvolvimento mais profundo.
Narrativamente, o filme busca explorar o conceito real de folie à deux (“psicose compartilhada”), um fenômeno psiquiátrico no qual indivíduos em estreita conexão emocional passam a compartilhar crenças delirantes. Consultados pelo Salon, especialistas na área afirmaram que, embora a doença seja de difícil estudo, sua representação no filme traz elementos verossímeis. O relacionamento entre Fleck e Lee é construído sobre essa dinâmica: enquanto Lee idealiza o Coringa como um símbolo revolucionário, Fleck se agarra à conexão como forma de validar sua própria existência. No entanto, a falta de uma abordagem mais profunda da psicologia de Lee reduz seu papel na trama, fazendo com que a personagem se torne mais um reflexo da obsessão de Fleck do que uma figura autônoma.
Visualmente, “Coringa: Delírio a Dois” é um triunfo. O diretor de fotografia Lawrence Sher retorna e, se já impressionou no primeiro filme, aqui se supera. O contraste entre os cenários frios e desoladores do Arkham e as sequências oníricas do mundo interno de Fleck é magistral, com um uso de luz e sombra que intensifica a atmosfera claustrofóbica do filme. O designer de produção Mark Friedberg também merece reconhecimento, especialmente pela forma como cria um universo onde a sanidade e a loucura se confundem a cada cena.
Se “Coringa: Delírio a Dois” tem um grande mérito, é sua capacidade de ressignificar o primeiro filme. Ao retirar de Fleck o controle sobre sua narrativa e colocá-lo como objeto de escrutínio, Phillips dá ao público a oportunidade de reavaliar o que antes poderia ser lido como uma glorificação da violência e do ressentimento masculino. Por outro lado, o roteiro segue carregado de inconsistências, e a tendência de Phillips ao didatismo torna a mensagem do filme menos sutil do que poderia ser.
“Coringa: Delírio a Dois” é um filme de paradoxos. Ao mesmo tempo em que se distancia da estrutura do primeiro, ele também depende de sua existência para criar impacto. Enquanto suas sequências musicais são ousadas, nem sempre justificam sua presença na história. E se sua mensagem é uma crítica à exaltação de Fleck, o filme também se delicia em transformá-lo novamente no centro das atenções. Com tudo isso, o que fica é um longa que, embora imperfeito, desafia expectativas e oferece um olhar intrigante sobre os efeitos colaterais de uma sociedade que, muitas vezes, transforma delírios em símbolos de revolução.
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