Filme que acaba de chegar à Netflix é mais sufocante que um interrogatório do FBI — e impossível de parar de assistir Divulgação / Max

Filme que acaba de chegar à Netflix é mais sufocante que um interrogatório do FBI — e impossível de parar de assistir

Em 3 de junho de 2017, agentes do FBI cercaram a casa de Reality Winner, uma veterana da Força Aérea dos Estados Unidos, com um mandado de busca e apreensão de aparelhos eletrônicos, manuscritos, fotografias, documentos e tudo mais que pudesse comprovar que aquela moça de 26 anos incompletos, havia quebrado a confiança que sua nação lhe depositara. Intérprete de farsi, dari e pashto, autorizada a acessar papéis de segurança máxima acerca de assuntos que poderiam comprometer a estabilidade diplomática da América, Reality imprimiu um arquivo contendo informações confidenciais sobre a interferência russa no pleito de 2016, quando Donald Trump elegeu-se presidente batendo a democrata Hillary Clinton, dobrou o volume e o guardou por dentro da meia-calça para depois despachá-lo ao The Intercept, um controverso site para publicação de dados sigilosos, numa caixa de correio próxima ao estúdio de ioga que frequentava. “Reality” recapitula esse momento traumático na vida de sua biografada, com tal riqueza de detalhes que o enredo acaba comprometido. Tina Satter adapta “Is This A Room” (“isto é um quarto?”, em tradução literal), a peça que escrevera e levara aos palcos em 2019, obcecada pelo rigor histórico, dando muitas explicações e se esquecendo de uma premissa elementar do bom cinema.

A falta de ritmo é sem dúvida o maior defeito de “Reality”. O filme se arrasta, especialmente na introdução, tentando situar o espectador nos dédalos da encrenca da protagonista, que volta da mercearia e nem pode guardar na geladeira seus mantimentos, tão certeira é a abordagem dos homens do serviço de inteligência doméstica. Eles querem saber de onde ela vem; ela diz que, antes de ter ido às compras, fora a uma aula de cross fit, o que parece plausível, uma vez que ela veste short curto e apertado e tênis de lona.

Paira no ar uma tensão sexual que o roteiro de Satter e James Paul Dallas explora a contento na virada do segundo para o terceiro ato, preferindo num primeiro momento hipnotizar o público com o interrogatório suave de Garrick e Taylor, os burocratas vividos por Josh Hamilton e Marchánt Davis, que perguntam, entre outras coisas, quanto peso Reality aguenta no supino ou se Augusta, no extremo leste da Geórgia, não é muito monótona para uma mulher jovem e solteira. A dignidade dela frente a tanto  embaraço impressiona, especialmente quando se nota que a ação é gravada e decerto tudo que ela pudesse dizer, para lembrar a surrada frase, seria usado em seu desfavor num futuro julgamento.

No momento em que o interrogatório sai do gramado em frente à casa de Reality e continua num anexo de luz branca e sem mobília nos fundos percebe-se a intenção da diretora quanto a movimentar a trama e o ambiente, excessivamente iluminado, dá, até à plateia mais leiga, a impressão de que Reality será torturada. Vêm à lembrança os casos Edward Snowden e Chelsea Manning, outros quadros da administração pública dos Estados Unidos que levaram a pior ao tentarem apontar irregularidades do tal sistema, e flashbacks rápidos mostram a anti-heroína visivelmente perturbada diante de monitores de televisão sintonizados na Fox News, a tropa de choque trumpista na imprensa, no escritório da NSA, a agência nacional de segurança, onde dava expediente. 

Sydney Sweeney oscila do pânico a uma ingenuidade pueril — Reality fala com os investidores do FBI, da hora em que é interpelada até receber voz de prisão sem nunca sequer pensar na necessidade de um advogado —, e ninguém hesita em acreditar que seja assim mesmo que as coisas se deem. Depois de quatro longas horas de inquérito informal e uma apreciação jurídica sumária, Reality Winner foi condenada a cinco anos e três meses de prisão em regime fechado por transmissão criminosa de informações de defesa nacional. Ela deixou a cadeia quatro depois, em 2 de junho de 2021, um antes da conclusão da sentença, por bom comportamento.

Filme: Reality
Diretor: Tina Satter
Ano: 2023
Gênero: Biografia/Drama/Thriller
Avaliação: 7/10 1 1
★★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.