O filme que foi rejeitado pela Netflix e se tornou um dos favoritos ao Oscar 2025 — sob demanda no Prime Video Divulgação / Rocket Science

O filme que foi rejeitado pela Netflix e se tornou um dos favoritos ao Oscar 2025 — sob demanda no Prime Video

Será que ainda há espaço para uma nova luz sobre um dos nomes mais comentados do século? “O Aprendiz”, dirigido pelo iraniano-dinamarquês Ali Abbasi, aposta que sim ao reconstituir os alicerces do poder de Donald Trump em uma Nova York dilacerada dos anos 1970. Embora o ex-presidente já seja objeto de incontáveis debates, este drama biográfico não se limita a relatos redundantes: ele se infiltra nos bastidores da personalidade que outrora se ergueu como magnata imobiliário e, mais tarde, líder de um país inteiro. O diretor, renomado pela ousadia de “Holy Spider”, escolhe uma lente menos caricata para expor a formação de Trump, sinalizando que, por trás do verniz de ostentação, havia insegurança, estratégias agressivas e uma fragilidade que o protagonista certamente preferiria manter em segredo.

Já na abertura, notamos os contrastes entre a ambição do jovem Donald (interpretado por Sebastian Stan) e a realidade sombria que o cerca. O roteiro, assinado por Gabriel Sherman, investe num cenário em que arranha-céus abandonados e pilhas de lixo em chamas pintam a paisagem de uma cidade quebrada. Fred Trump (Martin Donovan), pai e patriarca de poucos elogios, não esconde seu ceticismo quanto às ideias grandiosas do filho para revitalizar um hotel decadente na região central de Manhattan. A este herdeiro é oferecida, no máximo, a rotina de cobrar aluguéis em conjuntos residenciais, algo que Donald enxerga como um beco sem saída. A tensão paira de modo constante: enquanto o mundo exterior sinaliza perigo e desconfiança, o jovem protagonista se recusa a abandonar seus planos de luxo e conquista.

O fio condutor do filme envolve a chegada de Roy Cohn (Jeremy Strong), advogado ultraconservador que transita pelos ambientes mais exclusivos de Nova York com um cinismo marcante. Nos salões repletos de políticos questionáveis e empresários dispostos a tudo, Trump encontra um orientador moralmente duvidoso, mas absolutamente eficaz em abrir portas. Após salvá-lo de um processo jurídico complexo, Cohn sugere algo além dos honorários de praxe: uma aliança de interesses que, na prática, significa trocar informações, favores e segredos capazes de derrubar adversários. Em paralelo, há toda a encenação de uma elite que se diverte em clubes restritos e olha para Donald como um jovem pretensioso. Contudo, ele descobre, com sede de aprendizado, a cartilha de Cohn: atacar incessantemente, jamais admitir erro e decretar vitória mesmo quando os fatos digam o contrário.

O reencontro do espectador com a juventude de Trump se torna ainda mais impactante diante da atuação de Stan, que não se limita à imitação de trejeitos. Sua interpretação mostra um homem que evolui de um talento questionável para uma audácia quase incontrolável, impulsionada pelos mandamentos de seu mentor. Em cada fala, é possível perceber a progressiva corrosão de um senso moral que, se já não era robusto, sofre ainda mais sob a tutela de Cohn. O contraste aparece de forma aguda em Ivana Trump (Maria Bakalova), introduzida com desenvoltura e carisma que desconstroem a ideia de mero adereço de cena. Diferentemente do marido, Ivana exibe clareza sobre seus objetivos desde o início, lembrando que ela não se reduz a uma parceira subserviente. Há um trecho de dança que evoca o espírito da época, mas não se trata de cena fútil: enfatiza a determinação dessa figura feminina em quebrar protocolos e negociar espaço num universo ferozmente dominado por homens.

A fluidez narrativa se apoia tanto nas tensões familiares quanto nos aspectos políticos, amparada por fotografia granulada que reforça o sentimento de que tudo pode ruir a qualquer instante. O diretor aproveita as imagens de um lugar devastado para compor a trajetória de Donald, que, mesmo às voltas com a escuridão urbana, jamais deixa de exibir ares de grandeza. Impulsionado pelo peso de seu sobrenome, ele cava seu caminho para dentro de círculos restritos, inclusive por meio de acordos suspeitos com figuras como Rupert Murdoch — referência sutil, porém reveladora do grau de influência que o rodeava. Cada conquista, no entanto, tem um custo: a perda de qualquer vestígio de inibição e o reforço de um comportamento tão calculista que impressiona até mesmo quem ensinou suas estratégias.

A trama não caminha livre de controvérsias. Há uma cena específica envolvendo estupro conjugal — alvo de ampla discussão antes da estreia — que contrasta com o clima predominante do filme, focado na ambição e na arquitetura de poder. A inclusão desse episódio faz parte de um retrato de Trump que não busca alívio cômico, mas sim chocar ao revelar padrões de relacionamento tóxicos. O próprio ex-presidente reagiu de forma irada à produção, acionando advogados e protestando veementemente em redes sociais, reação que parece confirmar que Abbasi tocou em pontos nevrálgicos. Se por um lado alguns podem enxergar a sequência como desnecessária, ela ancora o enredo na realidade sombria que envolve a ascensão do protagonista, sem abrir margem para uma narrativa que o isente de comportamentos abusivos.

Em meio a essas tensões, Roy Cohn desponta como a figura mais enigmática. O homem que trabalhou com o senador Joseph McCarthy e perseguiu implacavelmente minorias sexuais exibe uma duplicidade desconcertante: homossexual enrustido, patriota de fachada e alguém que carrega um profundo desprezo por uma parcela significativa da população que diz amar. Jeremy Strong interpreta esse paradoxo com discrição impactante, deixando transparecer um turbilhão interno sempre à beira de uma explosão. É justamente quando ele percebe que o aprendiz se tornou poderoso demais que surge o eixo de virada definitivo da narrativa: Cohn, habituado a manipular, é subitamente manipulado por Donald, inaugurando uma inversão de papéis tão inevitável quanto simbólica.

A reta final do longa ainda se esforça para equilibrar nuances. Se em alguns momentos há ataques deliberados a aspectos físicos de Trump — ou brincadeiras com seu cabelo —, noutras cenas prevalece o esforço de não convertê-lo em caricatura vulgar. Abbasi costura uma tensão entre o retrato de um indivíduo frágil, inseguro e fascinado pelo sucesso, e o homem que, no futuro, governaria os Estados Unidos com a crença de que admitir erros seria sinal de fraqueza imperdoável. Ao evitarem a simplificação que transformaria Trump em um vilão unidimensional, roteirista e diretor obtêm um estudo de personagem que incomoda por sua complexidade.

“O Aprendiz” transcende a mera cinebiografia de ocasião ao esmiuçar uma teia de influências que não se restringe à personalidade do protagonista. Há uma crítica ampla às estruturas de poder que premiam a falta de escrúpulos, apoiam-se em conluios ilegais e celebram a figura mais ruidosa. Em nenhum instante o filme pede que o espectador se compadeça de Trump — existe, contudo, a tentativa de compreender os fatores que o moldaram. Sem entregar a absolvição que poderia esvaziar o impacto, a obra reflete sobre o tipo de ambiente político e financeiro capaz de projetar alguém movido a táticas questionáveis para o ápice.

O desfecho, inevitavelmente, provoca questionamentos a respeito de quem de fato cria personagens como Donald Trump: seria a própria sociedade, incapaz de punir a astúcia cínica de advogados como Roy Cohn? Ou talvez as instituições, que, mesmo frágeis, legitimam o avanço desenfreado de quem domina o jogo? Ao final, Abbasi não apresenta respostas fáceis. Fica a impressão de que o verdadeiro propósito é instigar o público a enxergar nos acontecimentos de quatro décadas atrás um reflexo do presente. E, nesse sentido, “O Aprendiz” cumpre sua tarefa com vigor: além de revelar os mecanismos que sustentaram a escalada de um jovem obstinado, lembra que esses dispositivos de manipulação podem persistir nas engrenagens do poder, perpetuando quem se dispõe a aprender — e aplicar — os mesmos métodos até se tornar incontrolável.

Filme: O Aprendiz
Diretor: Ali Abassi
Ano: 2024
Gênero: Biografia/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★