Ninguém filmou o amor como Jean-Luc Godard (1930-2022). Meio esquecido já em vida, Godard passa longe de qualquer clichê ao mostrar a crueza das relações, marcando uma nova era no cinema. Reação ao imediatismo e à perfeição estética de Hollywood, a Nouvelle Vague foi, ironicamente, uma grande inspiração para a indústria cinematográfica dos Estados Unidos, que precisava renovar o fôlego e o sangue, e personagens como Michel Poiccard eram tudo com que diretores como Stanley Kubrick (1928-1999) e Brian De Palma sempre haviam sonhado.
A leviandade, o narcisismo, o alheamento de tudo que marcam o protagonista de “Acossado” espraiaram-se por vários outros tipos em filmes memoráveis a exemplo de “Laranja Mecânica” (1972) ou “Scarface” (1983), mesmo que suas fontes primeiras sejam a literatura. Só por reunir Godard, François Truffaut (1932-1984) e Claude Chabrol (1930-2010), o roteiro de “Acossado” já levanta-se muito acima de quase tudo quanto se assiste hoje, o que não deixa de ser uma conclusão nada menos que desesperadora.
Michel é um ladrão de carros que tem Humphrey Bogart (1899-1957) por ídolo e que poderia muito bem passar por algum ricaço excêntrico, de chapéu fedora e ternos ligeiramente maiores que seu corpo esbelto, acendendo um cigarro no outro, não fosse aquela constante cara de cachorro abandonado, uma arma com a qual parece estar se virando desde que viu a luz deste mundo. Ele encontra Patricia Franchini, uma americana que sobe e desce o Primeiro Distrito a apregoar a edição parisiense do “New York Herald-Tribune” enquanto não começam as aulas na Sorbonne.
O filme só faz sentido se apreendido sob o ponto de vista dos dois e, ciente disso, Godard abusa das cenas em que Jean-Paul Belmondo (1933-2021) e Jean Seberg (1938-1979) andam de braços dados, como duas crianças, beijam-se e até fazem amor feito dois guerrilheiros, vingando-se da onipresente melancolia do existir com sua alegria insultuosa. Aos 27 anos incompletos, Belmondo parece mesmo um menino grande, ao passo que Seberg, autoexilando-se na Europa depois do fracasso de “Santa Joana” (1957) e “Bom Dia, Tristeza” (1958), de Otto Preminger (1905-1986), e Godard, sabiamente, elabora os conflitos fundamentais de Michel e Patricia mirando seus intérpretes, o que confere a “Acossado” a aura de verdadeira obra de arte, eterna, imperecível, que tanta falta tem feito às produções deste insano século 21. Godard continua superbíssimo.
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