Em “Amarcord” (1973), Federico Fellini (1920-1993) deixa claro que seu propósito é fazer sonhar — e fazer o espectador sonhar com ele. As lembranças dos tempos de menino; suas aventuras e desventuras à beira de uma adolescência que se avizinhava, tendo uma paragem indizível como o vilarejo de Rimini do começo dos anos 1930 à guisa de palco; suas pequenas elucubrações acerca de como deveria ser tornar-se um homem: tudo no filme recende a uma espécie de vida paralela, em que realidade e fantasia se amalgamam sem cerimônia, estabelecendo-se um contraste interessante com “Roma” (1972), trabalho lançado um ano antes, em que, por meio de um fio narrativo muito mais austero, expunha suas desditas de homem feito.
Giuseppe Tornatore segue essa mesma rota em “Cinema Paradiso”, narrativa algo fantasiosa sobre um garoto e sua grande paixão. Tornatore e a corroteirista Vanna Paoli valem-se das lições de Fellini para também deslindarem sentimentos que pertencem não só a Salvatore Di Vita (que não recebe esse nome por acaso), mas ao gênero humano inteiro. Se Totò, o sonhador que em criança ousa querer frequentar uma sala de projeção, representa uma imensa parcela da humanidade que só pode mesmo viver de seus delírios, sua versão adulta passa por angústias não menos torturantes, para as quais não há remédio.
Na Sicília, pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), um padre mistura-se à escuridão de um cinema tanto para moderar o entusiasmo da plateia como para censurar as sequências mais apimentadas da fita, tocando um sino todas as vezes em que alguém, na ficção ou na vida real, passa da conta. A TV ainda é um objeto do desejo longínquo, mas Totò não tem a menor vontade de renunciar a seu programa favorito e pretende continuar a se também esconder, não para regular a concupiscência de ninguém, mas para aproveitar as cenas que escapam à fúria do censor. Apesar da interferência do sacerdote, Alfredo, o projecionista interpretado por Philippe Noiret (1930-2006), mantém sua autoridade no lugar, e só por isso é que Totò sacia sua fome cinematográfica.
O filme anda por um flashback do qual o diretor dispõe para mostrar Totò em tenra idade, defrontando-se com carências afetivas e materiais, e homem feito e à primeira vista realizado como cineasta, lembrando-se das visitas clandestinas ao Cinema Paradiso, onde conheceu Charlie Chaplin (1889-1977), Akira Kurosawa (1910-1998) e os romances entre mocinhas bonitas e heróis hercúleos, tórridos para o padre. Como Fellini, em “Cinema Paradiso” Tornatore faz suas confissões quanto ao alcance dos filmes para si, poderosos, sem dúvida, mas não o bastante para ajudá-lo a ignorar a decrepitude, a doença e a morte, representadas no personagem de Noiret. Salvatore Cascio, Marco Leonardi e Jacques Perrin (1941-2022) dão vida a um eterno Totò, que há de habitar a alma de todo aquele que já se encantou por um enredo qualquer contado num imenso ecrã, agora reduzido a polegadas. Mas essa é uma outra história.
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