Grosseiro, violento, sórdido e absolutamente viciante: um dos filmes favoritos de Tarantino está de saída da Netflix Divulgação / Cinemundo

Grosseiro, violento, sórdido e absolutamente viciante: um dos filmes favoritos de Tarantino está de saída da Netflix

Em um deserto isolado, onde o silêncio aparentemente só é rompido pelo helicóptero que pousa trazendo Jen (Matilda Lutz) e seu amante rico e casado, Richard (Kevin Janssens), desenrola-se uma história que combina elementos do cinema de exploração clássico com uma releitura contemporânea intensa e provocativa. Já nos primeiros instantes, a atmosfera solar e cheia de cores vibrantes sugere um fim de semana de prazeres e, ao mesmo tempo, um prenúncio ameaçador. Jen, exuberante e despreocupada, não imagina que os amigos de Richard — Stan (Vincent Colombe) e Dimitri (Guillaume Bouchède) — se juntariam à festa antes do combinado. O que se segue é a quebra abrupta da leveza inicial para dar lugar a uma violência que, embora seja herdeira dos subgêneros “rape-revenge” e exploitation, é aqui atualizada com um olhar feminino implacável.

A diretora Coralie Fargeat, em seu primeiro longa, demonstra ter estudado a fundo as raízes do cinema que inspirou “Faster, Pussycat! Kill! Kill!”, “Ms. 45” e tantos outros clássicos do grindhouse. No entanto, ela se recusa a apenas reciclar convenções; em vez disso, faz uma apropriação revolucionária de um material por vezes repleto de misoginia. A escolha de situar a ação em um lugar que lembra Monument Valley, icônico em filmes western de índole essencialmente masculina, não é acidental: assim como John Ford redefiniu mitologias ao filmar heróis em meio a desfiladeiros áridos, Fargeat reconstrói um gênero, transformando o que tradicionalmente servia para gratificar o “male gaze” em uma experiência de confronto e denúncia. Logo nas primeiras cenas, os óculos espelhados de Richard sugerem um poder que se voltará contra ele quando Jen resolve retomar as rédeas da situação, obrigando-o a encarar seu próprio reflexo distorcido.

O ponto de ruptura, em que a atmosfera de festa se converte em um pesadelo, ocorre na manhã seguinte, quando um dos convidados abusa de Jen enquanto Richard está ausente. Na expectativa de encontrar apoio no homem que julgava ser seu protetor, ela se depara com uma omissão covarde e agressiva: o namorado, preocupado com sua reputação e disposto a qualquer coisa para não prejudicar seus planos de caça, opta por lançar Jen de um penhasco. A aparente morte da jovem, no entanto, não sela seu destino; ao contrário, funciona como a faísca de uma rebelião visceral. Ao emergir empalada em um galho que se revela tanto uma cicatriz quanto símbolo de renascimento, ela inicia uma trajetória quase mítica, como uma fênix em busca de vingança.

O realismo da sobrevida de Jen não se apoia em explicações médicas detalhadas, mas na força simbólica de cada ferida que ela carrega. A cena de cauterização que remete a clássicos de ação, evocando as proezas de “Rambo”, ganha uma energia renovada sob o comando de Fargeat: o que poderia ser apenas mais uma imagem gráfica torna-se um ritual de passagem, em que a protagonista abandona a ingenuidade e renasce guerreira. A violência, ainda que explícita e exagerada, nunca ofusca a construção emocional de Jen, cuja evolução de “Barbie descartável” a implacável caçadora adquire contornos de urgência e potência. Todas as armas antes destinadas a subjugar transformam-se em instrumentos de libertação, invertendo o jogo de forma catártica.

Essa inversão de papéis também escancara a misoginia arraigada nos personagens masculinos. Stan acredita que Jen deve se sentir grata por ser objeto de desejo; Dimitri não vê problema em “aproveitar” sua sexualidade, independentemente de consentimento; e Richard, sem escrúpulos, quer simplesmente eliminar quaisquer obstáculos à sua vida privilegiada. A “ressurreição” de Jen é um golpe direto na prepotência desses homens, que já tinham decretado o fim de sua história. Matilda Lutz, alternando entre uma fragilidade inicial e uma fúria quase primal, canaliza a energia de heroínas como Furiosa, de “Mad Max: Estrada da Fúria”, Erin, de “You’re Next”, “Tank Girl” e Nancy, de “A Hora do Pesadelo”, tornando cada ferimento uma evidência de seu crescimento pessoal. A cada passo, a protagonista não apenas se defende, mas reivindica o espaço que tentaram lhe tirar, num acerto de contas que devolve à mulher uma voz, um corpo e um poder constantemente negados pelo olhar masculino.

Com visual saturado, contrastando um deserto escaldante com a explosão sanguínea que colore o cenário, a fotografia de Robrecht Heyvaert atua como ponto de tensão e beleza simultâneos. Já a trilha sonora de Robin “Rob” Coudert, com influências eletrônicas à la John Carpenter, intensifica o ritmo alucinado da caçada, complementando o design de som que não deixa o espectador esquecer a gravidade dos eventos. “Vingança”, assim, não é apenas um exercício de estilo e brutalidade, mas uma profunda recusa a continuar retratando a mulher como objeto descartável. No fim das contas, o filme funciona como um grito de independência — um dedo do meio sangrento erguido contra quem insistir em negar a elas o direito de existir sem violências e silenciamentos. Coralie Fargeat, em seu longa de estreia, não só honra o legado dos clássicos de exploração, como o transforma em um manifesto furioso e libertador — um “I Spit on Your Grave” dos tempos modernos, porém muito mais consciente e corrosivo, que ergue suas bandeiras de empoderamento sem pedir permissão.

É um aceno audacioso aos filmes “trash” de antigamente, revisitado com a sofisticação e a urgência que nossa era demanda. E, se às vezes um tiro de espingarda na cabeça pode ser apenas isso, há momentos em que se transforma numa declaração de direitos. No universo de “Vingança”, cada disparo, cada gota de sangue e cada escolha estética representam um passo em direção à reapropriação feminina dos códigos de um gênero por tanto tempo dominado pelo patriarcado. É o cinema de exploração, mas com um propósito maior: tomar as ferramentas do opressor e devolvê-las em forma de vingança enfurecida. Se a sociedade insistir em converter o sentimento de direito masculino em epidemia, este filme deixa claro que há mulheres dispostas a revidar — e elas não vão se desculpar por isso.

Filme: Vingança
Diretor: Coralie Fargeat
Ano: 2017
Gênero: Ação/Drama/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★