Cruel, doloroso e visceral: drama com Vanessa Kirby vai remexer as feridas mais profundas da alma, na Netflix Benjamin Loeb / Netflix

Cruel, doloroso e visceral: drama com Vanessa Kirby vai remexer as feridas mais profundas da alma, na Netflix

Nos últimos anos, o cinema contemporâneo tem revisitado o plano-sequência com um refinamento técnico que intensifica a imersão do espectador, tornando-o prisioneiro involuntário das cenas. Nos anos 1970 e 1980, filmes como “Uma Mulher sob Influência” (1974), de John Cassavetes, e “Hannah e Suas Irmãs” (1986), de Woody Allen, exploraram esse recurso de maneira visceral. 

O público se vê envolto em um redemoinho visual e narrativo, onde a câmera parece penetrar o cotidiano dos personagens, capturando interações tumultuadas, diálogos acelerados e um caos deliberado que, paradoxalmente, revela significados ocultos por trás da aparente espontaneidade.

Seguindo essa linhagem, “Pieces of a Woman” (2020), do diretor húngaro Kornél Mundruczó, inicia-se com um plano-sequência meticulosamente arquitetado. Nos primeiros 25 minutos, cada diálogo, cada gesto, possui um peso dramático preciso, ainda que pareça casual. A cena transporta o espectador para um momento de extrema intimidade: o parto domiciliar de Martha Weiss (Vanessa Kirby), ao lado do marido, Sean (Shia LaBeouf), e da parteira substituta, Eva (Molly Parker). 

O trio se move entre os cômodos, imersos em um torvelinho de emoções, falas desencontradas e dores insuportáveis. Martha, entre suspiros e gritos, tenta racionalizar a experiência: elogia a aparência do marido, indaga sobre os próximos passos, protesta contra o desconforto físico. O clímax do nascimento é seguido por um silêncio brutal: Yvette, a filha do casal, não sobrevive. E, com sua partida, inicia-se a desagregação daquele núcleo familiar.

O luto de Martha não se restringe à perda da filha. Seu maior embate é com a mãe, Elizabeth (Ellen Burstyn), uma mulher moldada pela brutalidade do passado. Sobrevivente da Segunda Guerra, Elizabeth carrega a crença de que apenas os fortes prevalecem e, nesse contexto, Martha se torna alvo de seu julgamento impiedoso. De maneira sutil, mas inegável, a mãe insinua que a filha é a culpada pelo desfecho trágico, explicitando uma relação marcada por ressentimentos antigos. 

Em um dos momentos mais incômodos do filme, a família se encontra no cemitério para escolher a lápide da recém-nascida. Sean, preferindo evitar conflitos, se cala, mas Elizabeth insiste, elevando ainda mais a tensão. O embate atinge outro patamar em um jantar familiar, quando a mãe sugere pagar para que Sean desapareça da vida de Martha, em um gesto de manipulação àspera. 

O relacionamento do casal, já frágil, se deteriora rapidamente. Buscando uma saída para seu sofrimento, Sean se aproxima de Suzanne (Sarah Snook), prima e advogada da família, e encontra nela uma escapatória. O affair simboliza a falência emocional de Sean e sua incapacidade de lidar com a dor da esposa.

Em meio a esse vórtice de perdas, Martha definha, transformando-se em uma figura espectral, como se estivesse aprisionada entre a vida e a morte. Vanessa Kirby traduz essa angústia com uma performance assombrosa, tornando tangível o esgotamento emocional da personagem. Mas, apesar do vazio, algo nela resiste. 

A metáfora da maçã, elemento recorrente ao longo da narrativa, adquire um significado transcendental: representa a tentação, a culpa, mas também o renascimento. Aos poucos, Martha canaliza sua dor em um ato simbólico: extrai as sementes da fruta e inicia um ritual de cultivo, transformando sua perda em um novo começo. 

Nesse processo, “Pieces of a Woman” se revela mais do que um estudo sobre o luto; é uma meditação sobre resiliência. Em sua trajetória de dor e reconstrução, Martha se converte em uma figura quase mitológica, evocando a Eva do Gênesis, condenada à dor, mas também dotada da capacidade de gerar e transformar. Na cena final, ela se reencontra com a vida através do gesto mais simples e potente: cultivando, com as próprias mãos, a esperança de um futuro possível. 

A grandiosidade de “Pieces of a Woman” está nessa representação visceral da condição humana. Em sua dor, Martha é um retrato cruelmente autêntico de quem luta para seguir em frente após o inominável. E é nessa luta que reside sua beleza trágica: uma mulher despedaçada que, a despeito de tudo, encontra um caminho para a vida.

Filme: Pieces of a Woman
Diretor: Kornél Mundruczó
Ano: 2020
Gênero: Drama
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★