Baseado em best-seller de Walter Dean Myers, filme inteligente, brutal e controverso é tesouro inestimável na Netflix David Giesbrecht / Netflix

Baseado em best-seller de Walter Dean Myers, filme inteligente, brutal e controverso é tesouro inestimável na Netflix

A justiça deveria ser cega, mas, ao longo dos anos, tornou-se seletivamente míope, atendendo a conveniências e perpetuando desigualdades. Essa é a tese que se desenha em “Monstro”, de Anthony Mandler, um drama que se impõe não apenas pela potência de sua história, mas pelo desconforto que provoca. Finalizado em 2018, o filme amargou três anos de espera até seu lançamento oficial em 2021, um atraso sintomático do desinteresse sistêmico por narrativas que expõem as falhas estruturais do sistema judiciário. 

Inspirado no livro homônimo de Walter Dean Myers (1937-2014), o longa acompanha a jornada de Steve Harmon, interpretado por Kelvin Harrison Jr., um jovem negro de 17 anos que vê sua vida meticulosamente planejada desmoronar após um erro de percepção. Estudante exemplar de um colégio de elite e aspirante a cineasta, Steve se distingue dos rapazes da vizinhança, mas essa distinção não basta para livrá-lo do destino que lhe é imposto. Um simples deslocamento até a mercearia local transforma-se no início de um pesadelo jurídico: acusado de envolvimento em um assalto que culmina na morte do comerciante, ele é preso e transferido para uma penitenciária de segurança máxima, onde permanece à mercê da incerteza e da violência.

Ao se deparar com o título e o material promocional, o espectador desavisado poderia supor tratar-se de uma ficção fantástica, repleta de criaturas sobrenaturais. No entanto, os monstros aqui apresentados são reais, palpáveis, e suas atrocidades se escondem por trás da legalidade institucional. O filme expõe como a cor da pele e a condição socioeconômica determinam as chances de sobrevivência dentro e fora do tribunal. Para Steve, a batalha não se resume ao julgamento; sua luta pela dignidade começa no momento em que é lançado ao caos carcerário. Cercado por criminosos endurecidos, ele se vê forçado a fazer alianças estratégicas para manter-se vivo, enquanto lida com o pavor constante de ser engolido por um sistema que já o condenou antes mesmo da sentença oficial.

Mais do que um relato indignado, “Monstro” é uma análise meticulosa de um processo judicial contaminado pela parcialidade. A narrativa se concentra na advogada de Steve, que, convicta da inocência de seu cliente, empenha-se em desmantelar as frágeis provas que o acusam. A tensão atinge seu ápice na sala de audiências, onde o promotor, figura que deveria zelar pela justiça, assume o papel de arquiteto da desumanização. 

A estratégia é cruel e eficaz: ao definir Steve como um “monstro”, ele não apenas mina sua credibilidade, mas o reduz a uma caricatura que atende ao imaginário punitivista. O rótulo adere como um estigma, transformando-se na principal evidência contra ele. Essa prática, longe de ser isolada, reflete um mecanismo recorrente, utilizado tanto no tribunal quanto pela mídia sensacionalista, que se vale de manchetes simplificadoras para moldar a opinião pública e garantir a condenação antes mesmo da deliberação oficial. O filme desmonta esse teatro judicial, revelando o abismo que separa a teoria do devido processo legal da brutalidade da realidade.

A força de “Monstro” reside tanto na condução segura de Mandler quanto nas performances arrebatadoras de seu elenco. Kelvin Harrison Jr. entrega uma atuação magnética, enquanto Jeffrey Wright, no papel do pai de Steve, traduz com precisão a angústia de quem assiste impotente ao colapso da promessa de um futuro brilhante. O uso de recursos visuais, como os closes abruptos durante o julgamento, confere um caráter quase documental à experiência, intensificando a imersão do público na espiral de incerteza vivida pelo protagonista.

Em tempos de discussões acaloradas sobre justiça racial e encarceramento em massa, “Monstro” se impõe como uma obra essencial, não apenas pela contundência de sua denúncia, mas pela urgência de seu chamado à reflexão. Em menos de cem minutos, o filme escancara verdades incômodas, desafiando o espectador a encarar um sistema que transforma inocentes em culpados e desumaniza aqueles que não se encaixam no modelo de cidadania pré-aprovado. Trata-se de um lembrete inquietante de que, enquanto a balança da justiça pender para um dos lados, ninguém está verdadeiramente a salvo.

Filme: Monstro
Diretor: Anthony Mandler
Ano: 2021
Gênero: Crime/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★