Cada grão de areia, cada folha de cacto, cada escarpa de rocha guarda um pouco dos episódios inescapavelmente conflituosos protagonizados pelos vaqueiros americanos no transcurso de 250 anos, harmonizados aos trancos e barrancos à custa de sangue, suor, lágrimas e o aço dos revólveres, sempre em defesa da liberdade — sobretudo a sua própria. Mesmo a Constituição dos Estados Unidos inspira-se nesse arrojo dos caubóis, malgrado esse conceito, por natureza tão ambíguo, perca-se e degenere muitas vezes em justificativa para a intolerância, o ódio e o derramamento de sangue. O império da lei era ainda um cenário distante em 1880, quando se desenrola a história de “Os Imperdoáveis”; homens corretos, bandidos e meretrizes encontravam uma maneira qualquer para conviver em harmonia, e desses acordos tácitos nasciam relações que, não raro, sobrepujavam a morte.
Ninguém melhor que Clint Eastwood para transcrever para o cinema, com a exatidão necessária, muito do que acontecia naqueles tempos obscuros. Alma do faroeste — e do próprio cinema americano pós-moderno — por excelência, Eastwood põe no chinelo muito antimocinho e quase todos os super-heróis que certos estúdios empurram goela do público abaixo, sem que este sequer pigarreie. O que se vê em “Os Imperdoáveis” é mais um dos tantos shows de interpretação de um ator começando a envelhecer, mas ainda no auge da potência física e da maturidade no ofício que escolheu, talvez o único em muitos anos a reunir essas duas qualidades fundamentais em seu ofício por quase setenta anos agora, e contando. Aqui, Eastwood dá uma de suas tantas provas quanto à dificuldade de se pregar rótulos em quem quer que seja, tanto mais se o objeto em questão forem brucutus de século e meio atrás.
William Munny é um homem de passado. Hoje um criador de porcos, ele já foi um dos pistoleiros mais requisitados do Wyoming, mas desde que conheceu sua finada esposa Claudia, dedica-se a criar os filhos, o que exige-lhe que fique longe de encrenca. O roteiro de David Webb Peoples vibra no diapasão da possível nova debacle moral de Munny, uma vez que as crianças vivem com fome e, como o diabo mora nos detalhes, corre o boato de que uma gorda recompensa de mil dólares é oferecida para quem apanhar o culpado pelo assassinato brutal de Delilah Fitzgerald, a prostituta interpretada por Anna Levine.
A notícia se confirma e chega a Munny pela boca de Schofield Kid, um atrapalhado (e míope) aspirante a salteador, entre verdadeiramente indignado e algo pândego em sua sanha justiceira — “eles cortaram o rosto dela, tiraram-lhe os olhos, as orelhas, arrancaram até as tetas dela, caramba!”, esbraveja Kid —, num lance de comédia involuntária. A exemplo do que se dá em outras produções emblemáticas do gênero, como o igualmente sublime “Três Homens em Conflito” (1966), do mestre Sergio Leone (1929-1989), uma larga medida de “Os Imperdoáveis” realiza-se nesse terreno movediço das decisões personalíssimas, feito a que Munny deverá tomar, não em uma, mas em duas ocasiões. E figuras como Ned Logan, o antigo parceiro vivido por Morgan Freeman, e Little Bill Daggett, o xerife encarnado por Gene Hackman, tornam tudo muito mais difícil.
Uma crítica que se ouve acerca de “Os Imperdoáveis” é que o filme está datado. Não há a menor dúvida. O longa é o retrato de uma Hollywood muito mais tolerante e inteligente, aberta e hábil para compreender visões de mundo antipáticas e mesmo rabugentas, nas quais o célebre niilismo de Eastwood já era acerbo. Seu duplo Oscar por este trabalho, de Melhor Diretor e Melhor Filme, falam muito, à luz de uma saborosa inconfidência, que o próprio Oscar não é mais aquele. E isso não é tão bom quanto parece.
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