O que mais salta aos olhos em “Meu Ódio Será Sua Herança” é a ausência de cercas e muralhas na fronteira entre os Estados Unidos e o México. Assim mesmo, a falta de grandes novidades no filme de Sam Peckinpah (1925-1984) não empana o brilho do cineasta, um dos mais prolíficos da velha Hollywood, e neste, o diretor sabe muito bem o que deve fazer para manter o interesse do público. Peckinpah lida com limitações parecidas com as de mestres do gabarito do John Schlesinger (1926-2003) de “Perdidos na Noite” (1969) ou do John Huston (1906-1987) de “O Tesouro de Sierra Madre” (1948) no gênero inaugurado por Edwin S. Porter (1870-1941) com “O Grande Roubo do Trem” (1903), mas se sai galhardamente, seguro ao conduzir seu longa pela espiral de reviravoltas algo grandiloquentes que encantam a audiência. O diretor e o corroteirista Roy N. Sickner (1928-2001) absorvem do texto de Walon Green a natureza dos anti-herói no tempo das diligências, retratando com fidedignidade o caos de uma terra sem lei.
Um plano-sequência com crianças torturando um escorpião num formigueiro é uma boa metáfora para resumir o desconforto que sentirá o espectador ao longo de quase duas horas e meia de uma história sobre bandidos que, mesmo em menor número, domina a ação — malgrado Peckinpah transmita uma mensagem de alento e os ponha na cadeia, mantendo vivo o herói. Enquanto isso, o diretor faz de “Meu Ódio Será Sua Herança” um tratado sobre o dinheiro como um expediente dos mais cruéis para escravizar um povo, manobra que o público logo identifica e contra a qual não tarda a se rebelar, dando vazão a uma simpatia aberta pelos vilões. Emulando-se a máxima comercial que reza que o cliente está sempre certo, quem se dispõe a apreciar um filme tem suas razões para assumir este ou aquele comportamento, e Peckinpah sabe o jeito mais adequado de levar o enredo ao universo da barbárie em que chafurdam os tipos “inventados” por Porter há mais de 120 anos. Eles, como o cenário arenoso em que habitam, não mudam nunca.
Balas encontram corpos e corpos forram o chão de um vilarejo do sul do Texas. Pike Bishop, o gatilho mais rápido do Velho Oeste, deseja gozar da fortuna ilegal que amealhou ao longo dos trinta anos de delinquência, mas esse retiro não irá se dar tão facilmente quanto ele imagina, até porque, como última missão, Pike está decidido a saltear uma carga de armamentos que pretende vender à milícia liderada pelo general Mapache, de Emilio Fernández (1904-1986), que caça os homens de Pancho Villa (1878-1923), o guerrilheiro que quer libertar o México da ditadura de Porfírio Díaz (1830-1915).
Como se vê, o bandoleiro não tem nenhum interesse em ideologias e a performance sem floreios de William Holden (1918-1981) deixa isso bastante claro. Em meio a um elenco numeroso — para não mencionar as centenas de figurantes —, Holden incorpora essa dicotomia fundamental que extravasa dos mocinhos tortos dos westerns e chega a parte de fora do ecrã. Este é decerto o mais valioso legado de atores feito ele, e, por extensão, de diretores a exemplo de Peckinpah.
★★★★★★★★★★