Último dia na Netflix: o filme que te levará para dentro dele e fará 93 minutos parecerem o resto de sua vida Divulgação / Universal Pictures

Último dia na Netflix: o filme que te levará para dentro dele e fará 93 minutos parecerem o resto de sua vida

Ao longo dos tempos, a humanidade se deparou com a necessidade de estabelecer regras para sobreviver e prosperar. Os contos de fadas, muitas vezes, funcionaram como alertas sobre as consequências de transgredir essas normas. No contexto do século XVII, “A Bruxa” utiliza o desejo de emancipação feminina para ilustrar a ruína de uma família puritana isolada, cuja queda se conecta diretamente às tensões geradas por esse anseio.

No filme de Robert Eggers, a narrativa invoca preceitos religiosos e sermões que, assim como os contos populares, sublinham a necessidade de enquadramento para evitar a danação eterna. Os personagens articulam questões universais, à semelhança de Jó, que no texto bíblico busca persuadir à submissão divina. Contudo, a obra não moraliza; em vez disso, coloca o espectador em uma posição desconfortável, levando-o a reconhecer nas figuras pecadoras, conflituosas e falhas um reflexo da própria humanidade.

Combinando críticas religiosas, reflexões políticas e questionamentos filosóficos, a direção de Eggers não entrega respostas fáceis. Kate Dickie, no papel de Katherine, representa uma mãe consumida pelo luto e que compreende seu papel subordinado na família liderada por William, interpretado por Ralph Ineson. A família é composta também pelos filhos — gêmeos levianos, um garoto amedrontado, um bebê desaparecido e Thomasin, vivida por Anya Taylor-Joy, cuja presença é a chave da trama. Expulsos de sua comunidade original devido à sua incapacidade de seguir regras religiosas rigorosas, os personagens são condenados a uma existência solitária, cercada pela escuridão da floresta.

Neste ambiente opressor, Thomasin se destaca. Sua figura angelical contrasta com as acusações de impureza que surgem contra ela. O amadurecimento da jovem intensifica as tensões familiares, revelando o drama de ser mulher em uma época marcada por restrições sociais e patriarcalismo. Enquanto a família depende de sua força de trabalho, o desejo de casá-la logo se torna inviável devido à reclusão autoimposta. Eggers explora com coragem temas como violência doméstica e abuso, refletidos na relação conturbada entre Thomasin e seus pais.

O desaparecimento de Samuel marca a entrada definitiva do sobrenatural. O mal que habita a floresta é encarnado por uma bruxa ancestral que vê na família apenas intrusos. A figura do bode negro, Black Phillip, personifica o diabo, reforçando a simbologia clássica da presença demoníaca. Com o isolamento progressivo, a família sucumbe às forças destrutivas internas e externas, em uma escalada de medo e desespero. A personagem de Thomasin emerge como o centro dessa tragédia, representando as contradições da condição humana, especialmente das mulheres confinadas por estruturas sociais opressivas.

“A Bruxa” transcende a ideia de uma história sobre a aspiração de uma jovem sufocada pelo contexto histórico. A conversa entre Black Phillip e Thomasin revela o vazio existencial que consome os personagens, uma metáfora para a fragilidade humana diante das exigências de sobrevivência e identidade. Mais do que uma tragédia familiar, a narrativa reflete a dureza da vida feminina em um mundo dominado por estruturas patriarcais arcaicas. O desfecho, ao mesmo tempo belo e perturbador, inspira tanto compaixão quanto reflexão, oferecendo um retrato que ecoa como um lembrete de que muito ainda precisa ser transformado.

Filme: A Bruxa
Diretor: Robert Eggers
Ano: 2015
Gênero: Drama/Fantasia/Mistério/Terror/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★