Falar sobre o que se conhece e, acima de tudo, o que se ama é um caminho certeiro para a universalidade. Essa ideia, derivada do poema “O rio da minha aldeia”, de Fernando Pessoa, publicado postumamente em 1946, encaixa-se perfeitamente em “Belfast”, uma obra profundamente pessoal que Kenneth Branagh constrói a partir de suas memórias de infância na turbulenta Irlanda do Norte dos anos 1960. Com um olhar intimista, o filme é um testemunho da resiliência em meio ao caos, retratando o início dos “Troubles”, conflito que devastaria o país por três décadas.
Branagh, consagrado tanto como ator quanto diretor, transmite com naturalidade o olhar curioso e inquieto de um menino de nove anos, Buddy, alter ego do cineasta. Cercado pela efervescência dos confrontos entre protestantes e católicos, Buddy se vê em um universo que mistura o cotidiano e o extraordinário, o familiar e o violento. A fotografia em preto e branco de Haris Zambarloukos é um recurso narrativo marcante, alternando entre tons suaves e pinceladas de cores vibrantes que simbolizam o caráter seletivo e emotivo das memórias.
O filme dedica-se “a quem ficou, aos que partiram e aos que se perderam”, como anuncia o epílogo, e resgata o verão de 1969 pelo prisma de um menino e sua família, residentes em um bairro operário de Belfast. Enquanto episódios de “Star Trek” preenchem as noites de Buddy, as ruas estreitas tornam-se cenário de conflitos: janelas quebradas, portas arrombadas e multidões furiosas. Branagh utiliza essas cenas para compor um mosaico de personagens e emoções que evocam a sensação de reencontro com parentes distantes.
Jude Hill, na pele de Buddy, entrega uma interpretação tocante, mas é o elenco ao redor que amplia o impacto emocional da narrativa. Caitríona Balfe e Jamie Dornan, como Ma e Pa, equilibram ternura e força ao retratar os desafios de criar uma família em tempos de incerteza. Dornan, em particular, surpreende com um desempenho que solidifica seu amadurecimento profissional, afastando-se da sombra do galã de “Cinquenta Tons de Cinza”. Esse papel, aliado ao trabalho anterior em “O Cerco de Jadotville”, confirma sua evolução como ator.
Judi Dench e Ciarán Hinds, os avós de Buddy, adicionam profundidade e calor ao núcleo familiar. Dench, colaboradora frequente de Branagh, entrega uma performance contida, mas carregada de nuances, lembrando-nos do poder do cinema em revelar a humanidade nos pequenos gestos. A relação entre Buddy e seus avós é um dos pilares emocionais do filme, trazendo à tona a sabedoria intergeracional em um período de adversidade.
Apesar de seu tom lírico, “Belfast” não evita a dureza da realidade. Branagh, protestante por nascimento, não esconde a brutalidade dos “Troubles” e oferece um manifesto contra a ignorância e a intolerância, sem cair na armadilha da simplificação ou do maniqueísmo. As cenas de invasões a lares católicos são particularmente impactantes, capturando o horror de uma guerra que se infiltrava nas vidas comuns.
Ao longo de seus 98 minutos, “Belfast” flui como um riacho cristalino, conduzindo o espectador por um território onde a dor e a beleza coexistem. Mais do que uma recriação histórica, o filme é uma celebração da memória, da família e da esperança. É um lembrete de que, mesmo nas situações mais sombrias, o vínculo humano pode ser um farol. No fim, Branagh nos entrega não apenas um retrato de sua infância, mas uma obra que ecoa em todos que já experimentaram a dualidade de lembrar e seguir em frente.
★★★★★★★★★★